28 de marzo de 2014

Os Náufragos do Selene


Arthur C. Clarke
Os Náufragos do Selene (1961)

De Arthur C. Clarke já li mais de uma dúzia de livros. Em todos eles há uma contenção e uma sobriedade que fizeram deste autor um dos meus favoritos, na área da FC. Alguns têm como cenário a Lua. Escritos antes das missões Apollo, descrevem alguns exotismos locais, como, no caso presente, um mar de poeira cujas características são descritas como nem sólidas nem líquidas, com todas as desvantagens de ambos os estados, mas sem nenhuma das vantagens. Curiosa, também, a avaliação do fenómeno OVNI (além de "O Fim da Infância", não me recordo de outro livro de Clarke onde apareça um ser extraterrestre): neste futuro próximo é um tema obscuro, ignorado e ultrapassado, que Clarke localiza nos anos 50 do séc. XX e associa ao sentimento religioso, território de teorias da conspiração e de maníacos.

Todo astronauta acreditava que mais cedo ou mais tarde a raça humana encontraria inteligências vindas de outro lugar. Tal encontro ainda poderia estar muito distante, mas os hipotéticos "extraterrenos" já eram parte da mitologia do espaço e recebiam a culpa de tudo o que não tivesse explicação.
É fácil acreditar neles quando alguém se encontra com um grupo de companheiros em um mundo estranho e hostil, onde as próprias rochas e o ar (se houver ar) são totalmente exóticos. Aí nada pode ser considerado absurdo e a experiência de mil gerações, nascidas na Terra, pode ser inútil. Da mesma forma que o homem primitivo povoara o desconhecido ao seu redor com deuses e espíritos, assim o Homo astronauticus olhava por sobre o ombro, quando pousava em cada novo mundo, perguntando-se quem ou o quê já não estaria por lá. Durante alguns breves séculos o Homem se imaginara senhor do Universo; e essas esperanças e temores primitivos, sepultados em seu subconsciente, estavam agora mais fortes que nunca – e com boa dose de razão enquanto olhava a face brilhante dos céus e pensava nos poderes que estariam à espreita por lá.

Li anteriormente:
Luz da Terra (1955)
Expedição à Terra (1953)
O Outro Lado do Céu (1958)

22 de marzo de 2014

Cala a Minha Boca Com a Tua

Pedro Paixão
A Noiva Judia (1992)
Viver Todos os Dias Cansa (1995)
Nos Teus Braços Morreríamos (1998)
Cala a Minha Boca Com a Tua (2002)


De Pedro Paixão li estes quatro livros de rajada, o que é mais fácil do que possa parecer, pois cada um deles se lê em três horas, ou menos. Os três primeiros reli-os, doze anos depois, e, mais do que antes, os seus curtos textos pareceram-me o equivalente literário do que na astronomia se designa um buraco negro: um ponto de massa infinita e forte atracção gravitacional, do qual nem a luz escapa. O mais recente do lote li-o pela primeira vez, e é um pouco diferente: em vez de um alinhamento de dezenas de pequenos textos, agrupa cinco contos. Nas teorias astronómicas (para continuar com a analogia) também se fala da possibilidade de evaporação de um buraco negro, e aqui esse negrume esmagador está aqui mais diluído. O primeiro excerto é de Nos Teus Braços Morreríamos; o segundo de Cala a Minha Boca Com a Tua.

Já andei meses de cabeça perdida. Já houve um tempo em que me feria fundo a beleza de um corpo. Passei muitas noites sem querer dormir e muitos dias sem querer ver o que estava à minha frente. Vivi com mulheres. Traí e fui traído. Tive um pai e uma mãe como toda a gente, que morreram muito longe de mim. Conheci situações adversas mais vezes do que o bom sucesso. Estive doente e curei-me. Desejei viver e morrer com intensidades tamanhas que certamente por isso se anularam. Conheci o entusiasmo que abate as paredes e o desespero que tudo afoga no escuro. Tudo isso acabou. Tudo isso foi há muito tempo, numa outra espécie de vida. Hoje estou morto. Ninguém espera de mim o que quer que seja, nem saberia encontrar o lugar onde estou. E eu não tenho outra ambição que não seja a de prolongar por algum tempo esta situação privilegiada em que se espreita para o rio da vida com interesse e lucidez acrescidos porque já não se é parte interessada. Nasci em 1923 e ainda não fui enterrado.

O pai tem muitas perguntas para fazer sobre esta cidade enquanto o filho de treze anos, mais alto que todos nós, permanece calado com os olhos abertos por detrás de uns redondos óculos. Fico a saber que nada sei sobre esta cidade e que o senhor simpático viaja civilizadamente com o filho de comboio pelo nosso país. Vive em Nuremberga onde é dono de uma pequena agência imobiliária e alimenta a esperança de se tornar pintor para sempre. Nasceu a meio da guerra que destruiu a Europa e só lê autores franceses, de preferência. Quer saber de que vivemos. Digo-lhe que de dinheiro emprestado. Quer saber o que fazemos. Cito-lhe que depois da Índia descoberta ficámos sem emprego. Quer saber porque somos tão melancólicos e eu insisto que não, que no fundo até somos alegres, que a vida é que é triste e não temos culpa disso. Pergunta-me por uma revolução de rosas. Digo-lhe que se antes sentia nojo agora tenho muitas vezes náusea. Trocamos cartões e prometemos rever-nos no infinito.

18 de marzo de 2014

Contos Completos

Edgar Allan Poe
Contos Completos (1832-1849)

68 contos de Edgar Allan Poe, que representam quase toda a sua obra completa em prosa (completam-na três ou quatro curtos ensaios e o romance Gordon Pym). Mostram também o seu humor e versatilidade, para além da faceta mais conhecida do horror e do fantástico. O excerto que se segue é do conto O Sistema do Doutor Abreu e do Professor Pena.

Seguiu-se um espetáculo da mais terrível confusão. Com grande espanto meu, o Sr Maillard lançou-se para debaixo do aparador. Havia esperado de sua parte mais decisão. Os membros da orquestra que durante os últimos quinze minutos pareciam demasiado bêbados para executar a sua tarefa, ergueram-se todos imediatamente, pegando dos instrumentos, e, trepando em cima de sua mesa, atacaram, num só tom, o Yankee Doodle, que tocaram, se não com harmonia, pelo menos com uma energia sobre-humana, durante todo o tempo do tumulto.
Entretanto, para cima da principal mesa de jantar, entre as garrafas e copos, pulou o homem que com tanta dificuldade fora impedido de pular para cima dela antes. Logo que se instalou comodamente, começou um discurso que, sem dúvida, teria achado excelente, se pudesse ter sido ouvido. No mesmo momento, o homem que tinha predileção pelos piões se pôs a girar pela sala, com imensa energia, e com os braços estendidos em ângulo reto com o corpo, de modo que tinha o ar completo dum verdadeiro pião, derrubando qualquer corpo que acontecia estar em seu caminho. E então, ouvindo também um inacreditável estouro e espumejar de champanha, descobri, afinal, que provinham da pessoa que, durante o jantar, desempenhara o papel de garrafa de tão delicada bebida. E depois, novamente, o homem-rã coaxava como se a salvação de sua alma dependesse de cada nota que emitia. E, no meio de tudo isto, o contínuo zurrar dum jumento a tudo dominava. Quanto à minha velha amiga, Madame Joyeuse fazer chorar o seu aspecto de terrível perplexidade. Tudo quanto fazia era ficar a um canto, junto da lareira, e cantar o mais alto que podia: «Có-coró-cóóó!»

Li anteriormente:
As Aventuras de Arthur Gordon Pym (1837)