8 de decembro de 2016

O Sol Nasce Sempre (Fiesta)

Ernest Hemingway
O Sol Nasce Sempre (Fiesta) (1926)

Este romance de Hemingway designou-se The Sun Always Shine na sua edição original, e Fiesta quando foi editado em Inglaterra, daí a razão do título duplo.
A história anda à volta de um grupo de amigos que se movem por Paris: Jake Barnes (o narrador), Bill Gorton, Mike Campbell, Brett Ashley, e o judeu Robert Cohn (todos estadounidenses, à excepção de Mike – escocês – e Brett – inglesa –, sendo que os dois primeiros e o último são escritores), aos quais se juntam algumas personagens secundárias. Vivem todos uma vida boémia, carburada a álcool (muito se bebe neste livro!) e, em determinado ponto, Jake e Bill decidem ir ao País Vasco para uma pescaria; acabam por marcar encontro, em Pamplona, com Mike e Brett que se lhes reúnem, acompanhados por Cohn, que se fez convidado, devido ao seu interesse em Brett, apesar de saber que ela está acompanhada por Mike.
É pois neste fundo das festas de San Fermín, pormenorizadamente descritas, que se desenrola depois a trama, e a melhor parte do livro. Entende-se o  fascínio despertado por estas festas, e as touradas, com o seu exotismo, aos olhos de um estadounidense como Hemingway, quando elas ainda tinham algo de genuíno, antes de se massificarem completamente. «Gente chegara continuamente de fora, mas a cidade assimilara-a e não se dava por ela», escreve o autor. Há coisas que se perdem para sempre.

Feita uma curva entrámos numa vila e de ambos os lados se abriu subitamente um verdejante vale. Uma torrente atravessava o centro da vila e os vinhedos roçavam pelas casas.
A camioneta parou em frente de uma estalagem e muitos passageiros desceram, uma data de bagagem foi desamarrada do tejadilho e tirada, para o chão, de debaixo dos grandes oleados. Bill e eu descemos e entrámos na estalagem. Havia uma sala baixa e escura, com selas e arreios, forquilhas de madeira branca, cachos de alpargatas de sola de corda, presuntos, toucinhos, alhos e longos enchidos pendendo do tecto. Era fresca e sombria, e ficámos ao comprido balcão de madeira, onde duas mulheres serviam bebidas. Por trás delas, as prateleiras estavam cheias de géneros.
Cada um de nós bebeu uma aguardente, e pagámos quarenta cêntimos pelos dois copos. Dei à mulher cinquenta cêntimos contando com a gorjeta, e ela deu-me a moeda do troco, julgando que eu não percebera o preço.
Dois dos nossos vascos entraram e insistiram em pagar uma bebida. E assim pagaram a bebida e depois pagámos nós outra bebida, e eles deram-nos então palmadas nas costas e pagaram mais outra bebida. Foi depois a nossa vez, até que saímos para o sol e o calor e trepámos de novo para o tejadilho da camioneta. Havia imenso espaço agora para nos sentarmos no banco, e o vasco que viera deitado no forro de chapa sentou-se no meio de nós. A mulher que servira as bebidas apareceu a limpar as mãos ao avental e falou com alguém para dentro da camioneta. Apareceu então por sua vez o condutor, balançando duas sacas de couro com correio, e subiu, e, entre acenos de todos, arrancámos.

Li anteriormente:
O Adeus às Armas (1929)
Ilhas na Corrente (1970)
Na Outra Margem entre as Árvores (1950)

26 de novembro de 2016

The Island of Doctor Moreau

H. G. Wells
The Island of Doctor Moreau (1896)

Outra obra de H.G. Wells que conta com várias adaptações ao cinema. Recordo ter visto na televisão excertos, pelo menos, da adaptação de 1932 possivelmente, intitulada Island of Lost Souls, com Charles Laughton e Bela Lugosi, realizada por Erle C. Kenton. Li também, em tempos, A Outra Ilha do Dr. Moreau, do britânico Brian Aldiss, que glosava o tema. Isto para dizer que o tema de The Island of Dr. Moreau é intemporal.
Edward Prendick, último sobrevivente de um naufrágio no Pacífico equatorial, é recolhido quase inconsciente num navio capitaneado por um marinheiro de mau génio, fretado por um misterioso médico, Montgomery, que se faz acompanhar por uma estranha carga de animais ferozes. A malfadada viagem termina no destino de Montgomery, uma ilha desconhecida onde se procede à descarga; Prendick, que se tinha inimistado com a capitão, é expelido do navio, e assim se torna num visitante forçado da ilha, onde conhece o Dr. Moreau.
Esta obra questiona os limites éticos da ciência, pois o Dr. Moreau, como todos devem saber ainda que não tenham lido o livro, faz experiências com animais – vivissecção, enxertos de corpos na tentativa de recriar um novo ser, dando-lhes uma condição semi-humana em corpos grotescos, condição que esses animais não pediram nem podem recusar, significando o aprisionamento da sua ampliada consciência num inferno vivo. Aquilo que no final do séc. XIX se traduzia em transfusões de sangue e serragem de ossos, tem um paralelo nos nossos dias com as manipulações de ADN, com cientistas a brincar aos deuses, convencidos que vão corrigir aquilo que consideram ser as imperfeições da Natureza.

A strange persuasion came upon me, that, save for the grossness of the line, the grotesqueness of the forms, I had here before me the whole balance of human life in miniature, the whole interplay of instinct, reason, and fate in its simplest form. The Leopard-man had happened to go under: that was all the difference. Poor brute!
Poor brutes! I began to see the viler aspect of Moreau's cruelty. I had not thought before of the pain and trouble that came to these poor victims after they had passed from Moreau's hands. I had shivered only at the days of actual torment in the enclosure. But now that seemed to me the lesser part. Before, they had been beasts, their instincts fitly adapted to their surroundings, and happy as living things may be. Now they stumbled in the shackles of humanity, lived in a fear that never died, fretted by a law they could not understand; their mock-human existence, begun in an agony, was one long internal struggle, one long dread of Moreau—and for what? It was the wantonness of it that stirred me.
Had Moreau had any intelligible object, I could have sympathised at least a little with him. I am not so squeamish about pain as that. I could have forgiven him a little even, had his motive been only hate. But he was so irresponsible, so utterly careless! His curiosity, his mad, aimless investigations, drove him on; and the Things were thrown out to live a year or so, to struggle and blunder and suffer, and at last to die painfully. They were wretched in themselves; the old animal hate moved them to trouble one another; the Law held them back from a brief hot struggle and a decisive end to their natural animosities.
In those days my fear of the Beast People went the way of my personal fear for Moreau. I fell indeed into a morbid state, deep and enduring, and alien to fear, which has left permanent scars upon my mind. I must confess that I lost faith in the sanity of the world when I saw it suffering the painful disorder of this island. A blind Fate, a vast pitiless mechanism, seemed to cut and shape the fabric of existence and I, Moreau (by his passion for research), Montgomery (by his passion for drink), the Beast People with their instincts and mental restrictions, were torn and crushed, ruthlessly, inevitably, amid the infinite complexity of its incessant wheels. But this condition did not come all at once: I think indeed that I anticipate a little in speaking of it now.


Li anteriormente:
The Time Machine (1895)

12 de novembro de 2016

The Time Machine


H. G. Wells
The Time Machine (1895)

O britânico H. G. Wells tem uma curta série de obras bem conhecidas, datadas do virar do século XIX, a primeira das quais é A Máquina do Tempo. Acho incrível nunca ter tido a oportunidade de ler qualquer delas, e espero corrigir isso agora, tanto mais quanto sempre encontrei um certo encanto nesta proto-FC, então designada por «romances científicos», que encontrei em alguns dos seus contemporâneos, como Allan Poe, Conan Doyle, Stevenson ou Verne.
A história é conhecida: um inventor atirado para o ano 802701, encontra a Terra transformada num jardim decadente, povoada pelos Eloi, uma humanidade infantilizada. Aquilo que, numa primeira impressão lhe parecera uma «Idade do Ouro», a breve trecho se transforma num cenário sinistro, quando entram em cena os habitantes do mundo subterrâneo, os Morlocks. Dias depois, numa fuga apressada, o crononauta chega a 30 milhões de anos no futuro, numa Terra desolada, inóspita e povoada por bestas de pesadelo, já sem movimento de rotação, com o sol de tom alaranjado, em fase de extinção, onde acaba por presenciar um eclipse solar.
Lembro-me de ter visto na televisão, há muito tempo, a cena correspondente ao trecho que escolhi; já não me recordo se vi o filme completo, mas esta cena ficou-me na memória. Sei agora que era uma adaptação de 1960, de George Pal, com Rod Taylor, Alan Young e Yvette Mimieux como protagonistas, e está no YouTube com o preço «a partir de 2,99€». Mas, como diz um dos comentários mais acertados – «3€ for an online movie from 1960? Go back to work, fucking jews!»

'I drew a breath, set my teeth, gripped the starting lever with both hands, and went off with a thud. The laboratory got hazy and went dark. Mrs. Watchett came in and walked, apparently without seeing me, towards the garden door. I suppose it took her a minute or so to traverse the place, but to me she seemed to shoot across the room like a rocket. I pressed the lever over to its extreme position. The night came like the turning out of a lamp, and in another moment came to-morrow. The laboratory grew faint and hazy, then fainter and ever fainter. To-morrow night came black, then day again, night again, day again, faster and faster still. An eddying murmur filled my ears, and a strange, dumb confusedness descended on my mind.
'I am afraid I cannot convey the peculiar sensations of time travelling. They are excessively unpleasant. There is a feeling exactly like that one has upon a switchback—of a helpless headlong motion! I felt the same horrible anticipation, too, of an imminent smash. As I put on pace, night followed day like the flapping of a black wing. The dim suggestion of the laboratory seemed presently to fall away from me, and I saw the sun hopping swiftly across the sky, leaping it every minute, and every minute marking a day. I supposed the laboratory had been destroyed and I had come into the open air. I had a dim impression of scaffolding, but I was already going too fast to be conscious of any moving things. The slowest snail that ever crawled dashed by too fast for me. The twinkling succession of darkness and light was excessively painful to the eye. Then, in the intermittent darknesses, I saw the moon spinning swiftly through her quarters from new to full, and had a faint glimpse of the circling stars. Presently, as I went on, still gaining velocity, the palpitation of night and day merged into one continuous greyness; the sky took on a wonderful deepness of blue, a splendid luminous color like that of early twilight; the jerking sun became a streak of fire, a brilliant arch, in space; the moon a fainter fluctuating band; and I could see nothing of the stars, save now and then a brighter circle flickering in the blue.

1 de novembro de 2016

Esperando al Rey


José María Pérez
Esperando al Rey (2014)

Numa noite de Inverno, tive a sorte de assistir a um documentário da TVE online sobre a catedral de Burgos. Tratava-se do início de uma série, em sete episódios, La Luz y el Misterio de las Catedrales, dedicada às catedrais góticas espanholas, que acompanhei semanalmente. Era apresentada por José María Pérez, arquitecto e desenhista (conhecido como «Peridis», publicou uma tira diária no El País de 1976 a 2011), cujo dom da palavra e capacidade comunicativa me fez lembrar o saudoso José Hermano Saraiva. Depois descobri que, anos antes, tinha apresentado uma outra série, Las Claves del Románico, muito mais extensa, com 33 episódios emitidos em três temporadas entre 2002 e 2007, que dão um panorama muito pormenorizado dos monumentos românicos no país vizinho, acompanhado de paisagens impressionantes e das necessárias explicações sobre o contexto histórico. Também os visionei a todos e recomendo-os vivamente – basta ir à página da TVE, ambas as séries estão disponíveis em streaming.
José María Pérez esteve na origem da Fundación Santa María la Real del Patrimonio Histórico, e, entre os seus muito projectos culturais destaca-se a Enciclopedia del Románico en la Península Ibérica (leia-se Espanha). Não será portanto uma surpresa que, nesta sua primeira incursão pela literatura, tenha escolhido por tema e cenário a época histórica na qual se especializou, com este Esperando al Rey, vencedor do Prémio Afonso X o Sábio de Novela Histórica em 2014.
Passado entre 1141 e 1180, o enredo centra-se basicamente na condessa Teresa Fernandes de Trava, filha de Teresa de Leão e de Fernão Peres de Trava (o que faz dela meia-irmã de Afonso Henriques – nesta época, todos os soberanos dos reinos peninsulares eram irmãos, primos ou de parentesco muito próximo), desde a sua infância até à vida adulta. Acompanha-se o final do reinado de Afonso VII de Leão e Castela, a divisão do seu reino pelos filhos Fernando II de Leão e Sancho III de Castela (uma vez mais se manifestou essa incompreensível e tão espanhola tendência à dispersão). Com a morte prematura de Sancho III e a passagem do título ao seu filho Afonso VIII, com apenas três anos de idade, os onze anos seguintes acompanham a regência até à maioridade do rei, coroado aos 14 anos. O regente de Castela era, nessa altura, Nuno Peres de Lara, casado com Teresa que, após a sua morte, se casou em segundas núpcias com Fernando II. Sobre este pano de fundo espraia-se uma narrativa viva e fluida acerca da vida medieval nesta parte da Hispânia, com um enfoque muito particular no surto românico – as obras da catedral de Santiago de Compostela servem algumas vezes de cenário –, e o seu enquadramento na sociedade de então.

Después de que el legado del papa terminara su predicación al grito de «¡Dios lo quiere!», se levantó vacilante el emperador.
—En nombre de Dios Todopoderoso —declaró solemnemente—, que ha creado todo lo que vemos y no vemos, yo, Alfonso, emperador de toda Hispania, os pongo a todos vosotros como testigos para que, cuando yo falte, se repartan los reinos que me pertenecen del siguiente modo: a mi hijo primogénito Sancho le corresponde....
Por un instante le pasaron por la cabeza todos los avatares del reino y las dudas se le agarraban a la garganta. «Sancho es prudente y diplomático, pero es enfermizo, tiene mal de estómago y no termina de curar un catarro cuando otro le sobreviene. Fernando es atolondrado. Primero se lanza y luego lo piensa... o no lo piensa y se olvida y a otra cosa. Si Fernando tuviera la sensatez y la prudencia de Sancho o Sancho la valentía y la fortaleza de Fernando, de cualquiera de ellos sacábamos un magnífico sucesor. Dividir el reino, tal y como me aconsejaron los condes Manrique de Lara y Fernando de Traba, me pareció lo más conveniente entonces, pero ahora que nos atacan los almohades... no sé qué pasará cuando yo falte. Si no le dejara el reino de León, sería capaz de matar a Sancho y se quedaría con todo como el abuelo».
La emoción le ahogaba, tenía la garganta reseca y las toses que ensayaba no le libraron de la afonía. Como los murmullos llegaban de todos los rincones de la basílica, pasó el documento al canciller y le señaló por gestos que leyera bien alto para que nadie tuviera dudas de cuáles eran sus designios.
—Con la venia del emperador: «A mi hijo primogénito Sancho le corresponde toda Castilla con las villas de Segovia y Ávila y todas las tierras al sur del Duero, y todas las villas, castillos y tierras que están detrás de la sierra y también el reino de Toledo... Y además, la Tierra de Campos hasta Sahagún».
—Esto no era lo que yo esperaba —murmuró entre dientes Fernando con un gesto de contrariedad que no pudo disimular—. De un plumazo ha regalado el pan de mi reino al imbécil de mi hermano.
—«Y a mi hijo el rey don Fernando —continuó el canciller— le asigno Asturias y toda Galicia, Zamora, Toro y todo el reino de León».
Sancho, que se había quedado sin la mitad de la herencia que le correspondía como primogénito, tampoco estaba satisfecho a pesar del regalo del granero del reino, pero se consoló al ver la cara de estupefacción de su hermano.
Pero la frontera entre los reinos de León y de Castilla, llana y sin ríos o cordilleras que la delimitasen, era de difícil trazado. Nada se decía del reparto de las tierras de infieles que se conquistaran en el futuro. Y este podía ser un motivo más de fricciones entre los reinos.

7 de outubro de 2016

Los Crímenes de los «Buenos»


Joaquín Bochaca
Los Crímenes de los «Buenos» (1982)

Este livro parte dos critérios utilizados nos julgamentos de Nuremberga – crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade (crimes que não estavam tipificados na época em que foram cometidos) – e aplica-os ao lado vencedor, com resultados demolidores, tanto mais quando boa parte destes crimes foram cometidos após terminar a guerra.
Somos confrontados com o bombardeamento gratuito de cidades e populações, atrás da linha de frente e com o único objectivo de provocar a morte de civis, como se viu no bombardeamento de Dresden, cidade aberta, sem qualquer interesse militar, onde se juntavam centenas de milhares em fuga da frente leste, provocando mais vítimas que Hiroshima e Nagasaki juntas (outras duas cidades sem objectivos militares). Acompanhamos os constantes atropelos às Convenções de Genebra e de Haia por parte dos Aliados, os "bons", e a guerra desleal que, desde a primeira hora moveram contra o Eixo; a manipulação da camarilha de Roosevelt na preparação de um "isco" chamado Pearl Harbour que, finalmente, lhes deu o pretexto que tanto procuravam para levar os EUA a uma guerra alheia; passamos pela farsa do Tribunal de Nuremberga, pela ignomínia do Plano Morgenthau e da Operação Kellhaul; observamos a utilização de mão de obra escrava nos anos que se seguiram ao fim da guerra (não só pela URSS, mas também pela Austrália, França e Inglaterra); verificamos a contabilidade de vítimas que são atribuídas aos "bons", segundo as estimativas mais modestas: 10,5 milhões de mortos por crimes de guerra e depurações, 6,9 milhões de prisioneiros e deportados desaparecidos por violação das Convenções de Genebra, 13,5 milhões de pessoas encarceradas após o fim da guerra por aplicação de leis retroactivas; analisamos o percurso dos protagonistas nas décadas que se seguiram ao confronto, e por fim, o somatório de vítimas atribuídos ao comunismo, segundo um estudo (naturalmente incompleto) publicado por Jean-Pierre Dujardin em 1978: 150 milhões de mortos – temas sombrios lançados ao esquecimento, enquanto se apontavam os holofotes para outro lado. Falava-se dos crimes míticos e pretéritos para que não se falasse dos "crimes dos bons".
Este livro recomenda-se a quem não se conforma com os dogmas da historiografia marxista, com essa leitura errada, mas infinitamente propagandeada pelos mass media, tendo o mérito de recorrer, sempre que possível, ao testemunho escrito de partidários dos Aliados ou, quando muito, de autores tidos como neutrais.
Destacam-se os capítulos dedicados a analisar as condições que levaram ao despoletar da guerra: as absurdas disposições do Tratado de Versalhes, por uma incompetente (ou algo mais?) Sociedade das Nações, foram na realidade o rastilho já aceso que levou a essa nova hecatombe bélica em território europeu, uma guerra procurada a todo o transe por determinadas elites políticas e financeiras anglo-franco-estadounidenses – os chamados poderes fácticos, com o fim inconfessável de proteger a revolução internacionalista soviética, contra a vontade e o sentimento dos seus próprios povos. A forma como a Polónia foi usada como pretexto, e incentivada a criar as condições que levassem à intervenção alemã (e consequente guerra), oferecendo-lhe uma aliança para a qual tanto a França como a Inglaterra sabiam estar impreparadas para responder; mentindo-lhe sobre o poderio militar alemão, desvalorizando-o, e sobre a pretensa impopularidade do regime, fazendo-lhe crer que, mal estalasse a guerra, este seria deposto pela aristocracia militar; acicatou-se o nacionalismo polaco contra as minorias alemãs que viviam dentro das suas fronteiras, numa série de agressões e limpeza étnica que culminaram ao massacre de Bromberg (quantas vezes se ouviu falar disto nos mass media?), nas vésperas da inevitável intervenção do Reich.
Curioso será notar que a segurança e integridade da Polónia, pretexto oficial que levou à guerra, foi esquecido em duas semanas, tempo que mediou a invasão alemã e a violação da sua fronteira oriental pelas tropas soviéticas, que já não mereceu qualquer desagravo. E, passados cinco anos, metade do que era o território polaco foi alegremente entregue pelos autoproclamados "protectores" à URSS, ficando a Polónia como um estado vassalo, no qual importantes cargos do governo e da administração foram ocupados pelos amos soviéticos.

Aunque toda ciudad alemana de alguna importancia fue profusamente bombardeada, cabe hacer especial mención de los bombardeos de Berlín y, sobre todo, de Hamburgo, el 25 de julio y el 3 de agosto de 1943. Los ataques contra los barrios residenciales de la capital hanseática se desarrollaron de noche, y con una saña hasta entonces inigualada. Pero todos los récords de la gratuita violencia fueron batidos en el bombardeo de Dresde, llevado a cabo durante la noche del 13 al 14 de febrero de 1945. Esa fue la más sangrienta acción bélica realizada, a lo largo de toda la Historia del Mundo, contra una población civil. Dresde, se hallaba entonces, a unos 115 kilómetros de las líneas del frente germano-ruso, y a ella habían llegado más de medio millón de refugiados, ancianos, mujeres y niños. Dresde era una ciudad abierta. En ella no habían cuarteles, ni fábricas de armamentos, ni objetivos militares de ningún género. Habían, en cambio, numerosos hospitales, con enormes cruces rojas pintadas en sus azoteas.
En la mañana del 13 de febrero, 35 aviones ingleses de reconocimiento volaron sobre Dresde y tomaron numerosas fotografías, sin ser inquietados por la Luftwaffe, que se hallaba operando en el frente, ni por las defensas antiaéreas, inexistentes en una ciudad residencial cuya única industria era la de cerámicas. Por la noche, 800 bombarderos de la RAF arrojaron sobre la indefensa ciudad, abarrotada de refugiados, una lluvia de bombas explosivas e incendiarias. Al amanecer del día siguiente, una segunda oleada de bombarderos descargó otro alud de fuego. Y horas más tarde, otros 1.200 tetramotores acabaron de machacar la ciudad destruida, avivando la horrorosa pira con latas de petróleo. En total se lanzaron sobre Dresde 10.000 bombas explosivas y 650.000 bombas incendiarias, amén de 15.000 latas de petróleo, de un hectolitro cada una. El escritor inglés F.J.P. Veale, dice: «Para dar una impresión más dramática, en medio del horror general, las fieras del Parque Zoológico, frenéticas por el ruido y por el resplandor de las explosiones, se escaparon. Se cuenta que estos animales, así como los grupos de refugiados, fueron ametrallados cuando trataban de escapar a través del Parque Grande, por aviones de caza en vuelo rasante... en dicho parque fueron encontrados luego muchos cuerpos de hombres y animales acribillados a balazos... Para evitar las epidemias causadas por los cadáveres en putrefacción, hubo que organizar gigantescas piras que consumían, cada una, cinco mil cuerpos o pedazos de cuerpos. La espantosa tarea se prolongó durante varias semanas.
«Los cálculos del número total de victimas en ese descomunal bombardeo varían mucho de uno a otro. Algunos elevan la cifra hasta un cuarto de millón. Personalmente nos sentimos inclinados a adherimos a esa cifra». Irving no se atreve a dar cifras aunque opta por la de 235.000 muertos y cabe suponer que el número de heridos debió, al menos, doblar esa cantidad.
[...]
El retrato de este gran hombre quedaría incompleto si no se añadiera su intención de arrojar bombas bacteriológicas sobre Alemania. Según la revista americana Spotlight (8-VI-1981) Churchill quería lanzar bombas venenosas y bacteriológicas sobre Berlín, Hamburgo, Frankfurt y Sttugart, a finales de 1944. El plan consistía en arrojar un millón de pequeñas bombas sobre cada una de esas ciudades; esas bombas contendrían bacterias de ántrax. El ántrax es una enfermedad mortalmente contagiosa, tanto para personas como para animales. Tal vez en medio de una de sus clásicas intoxicaciones etílicas, Sir Winston le dijo al jefe de su departamento de guerra química que investigara si el uso de bombas de gas, especialmente de gas mostaza, y de bombas bactericidas resultaría. Según el funcionario consultado, si el plan se hubiera llevado a la práctica, Berlín sería inhabitable todavía en 1981; el número de muertes no hubiera bajado de los tres millones de personas que, dadas las circunstancias, hubieran sido mayoritariamente mujeres, niños, ancianos y prisioneros de guerra.
Dichas bombas no se usaron por no haberse llegado a producir en número suficiente antes del fin de la guerra. Esta «perla» humanitaria ha sido divulgada, incluso, por la muy oficial B.B.C. Y tal vez convendría recordar aquí, que Hitler, una víctima del gas en la I Guerra Mundial, rehusó emplearlo en la II, y que Churchill fue también el responsable de los primeros campos de concentración para civiles en la guerra contra los Boers.
[...]
Un inciso. Queremos llamar la atención sobre un punto que hemos observado escapa a la atención de los más, pese a su sensacional rareza. En el momento de terminar la guerra de las Democracias contra los Fascismos —nos consta que la denominación no es demasiado precisa, pero debemos esquematizar en aras de la comprensión general— eran líderes de las Cinco Grandes Potencias: Truman, Churchill, Stalin, De Gaulle y Chiang-Kai-Chek. Pues bien; ninguno de estos personajes llegó al poder por medio del Sufragio Universal. Truman sucedió automáticamente a Roosevelt, como Vice-Presidente que era, a la muerte de este, pero nadie le había votado como Presidente. Churchill llegó a Primer Ministro por una maniobra de pasillos en el Parlamento, pero el pueblo inglés no le votó, y en cuanto tuvo ocasión de votarle, le echó a la calle. [El pueblo inglés se hartó de negarle sus votos a Churchill. Para tan ferviente creyente en la taumaturgia de la Democracia eso debió ser desmoralizador y traumatizante. Fue, sucesivamente, derrotado en elecciones parciales a diputado cuando se presentó por los laborales, los jóvenes conservadores, los laboristas independientes y los conservadores. Llegó a Primer Ministro merced a una maniobra de pasillos en el Parlamento. Cuando volvió a ser Premier en 1951, lo hizo al alimón con Eden, pero al retirarse discretamente este, cual estaba convenido, el culto pueblo británico volvió a echarle. (N. del A)]
Stalin y Chiang-Kai-Chek eran dos dictadores y nunca habían sido votados. Y De Gaulle, desde 1944 hasta 1948, permaneció en el Poder sin someter su augusta persona a ninguna votación.
Se ha dicho que fue la guerra de las Democracias contra las Dictaduras. Hemos visto que las democracias estaban encabezadas por individuos que no habían llegado al poder por el sistema del Sufragio Universal. El único que llegó al Poder por ese método fue el Canciller del III Reich, Adolf Hitler. Gustará o no gustará. Pero es un hecho. Y los hechos son tozudos.

24 de setembro de 2016

The Cat Who Walks Through Walls

Robert A. Heinlein
The Cat Who Walks Through Walls (1985)

"Precisamos de si para matar um homem." – Esta é a primeira frase do livro, dita à mesa de um restaurante, e dirigida a Richard Ames, o narrador; quem a pronuncia acaba presumivelmente morto, por um atirador invisível, antes de se passarem cinco minutos. É assim que começa esta história de contornos policiais, cuja primeira parte descreve a fuga de Richard e sua mulher Gwen (as coisas complicaram-se após o atentado), de Golden Rule, uma espécie de cidade-estado na órbita de Luna. A segunda parte, consumada a fuga, passa-se maioritariamente em Hong Kong Luna e Luna City, cenários de The Moon is a Harsh Mistress, quase um século volvido sobre a independência, com a sociedade lunar a caminhar rapidamente para uma autocracia. Mas, também aí a permanência do casal, com a cabeça de Richard posta a prémio, é tudo menos tranquila. No limiar da terceira parte, depois de alguns diálogos prenunciadores, entram em cena muitos dos personagens conhecidos dos anteriores livros da série, como as gémeas Laz e Lor, Tamara, Minerva, Galahad, Maureen, o quarteto protagonista de The Number Of The Beast, e o próprio Lazarus Long, como seria de esperar, entre muitos outros.
Este livro, O Gato que Atravessa as Paredes na versão portuguesa que li em 1991, integra a série História do Futuro; reli-o agora na versão original, na série de livros pertencentes ao ciclo, por ordem cronológica de publicação – o que faz muito mais sentido. É sobretudo na terceira parte, grande parte decorrida em Tertius, que se retoma o fio narrativo condutor da série, aprofundando o tema dos universos paralelos, sendo bastante útil ter lido os livros anteriores para entender as alusões e referências a factos passados.

"Gretchen, when I first met you, less than a week ago, you were as I recall 'going on thirteen.' So how dare you be five centimeters taller, five kilos heavier, and at least five years older? Careful how you answer, as anything you say will be taken down by Teena and held against you at another time and place."
"Did someone mention my name? Hi, Gretchen! Welcome home."
"Hi, Teena. It's great to be back!"
I squeezed Xia. "You, too. You look five years younger and you've got to explain it."
"No mystery about me. I'm studying molecular biology just as I was in Luna—but here they know far more about it—and paying my way by working in Howard Clinic doing unprogrammed 'George' jobs—and spending every spare minute in this pool. Richard, I've learned to swim! Why, back Loonie side I didn't know anyone who knew anyone who knew how to swim. And sunshine, and fresh air! In Kongville I sat indoors, breathing canned air under artificial light, and dickered with dudes over bundling bins." She took a deep breath, raising her bust past the danger point, and sighed it out. "I've come alive! No wonder I look younger."
"All right, you're excused. But don't let it happen again. Gretchen?"
"Grandma Hazel, is he teasing? He talks just like Lazarus."
"He's teasing, love. Tell him what you've been doing and why you are older."
"Well... the morning we got here I asked Grandma Hazel for advice—"
"No need to call me 'Grandma,' dear."
"But that's what Cas and Pol call you and I'm two generations junior to them. They require me to call them 'Uncle.'"
"I'll make them say 'Uncle'! Pay no attention to Castor and Pollux, Gretchen; they're a bad influence."
"All right. But I think they're kind o' nice. But teases. Mr. Richard—"
"And no need to call me 'Mister.'"
"Yes, sir. Hazel was busy—you were so terribly ill!—so she turned me over to Maureen, who assigned me to Deety, who got me started on Galacta and gave me some history to read and taught me basic six-axes space-time theory and the literary paradox. Conceptual metaphysics—"
"Slow down! You lost me."

Li anteriormente:
The Number of the Beast (1979)
Amor Sem Limites (1973)
The Moon is a Harsh Mistress (1966)

7 de setembro de 2016

A Jangada de Pedra

José Saramago
A Jangada de Pedra (1986)

A Jangada de Pedra é um romance que tem como tema principal a misteriosa separação da Península Ibérica do continente europeu, e o igualmente misterioso percurso que a leva a rumar Atlântico fora. Nas primeiras páginas descrevem-se alguns prodígios sucedidos com as principais personagens da obra – Joaquim Sassa, que lança uma pedra a uma distância impossível; José Anaiço, sempre acompanhado por uma nuvem de estorninhos; Pedro Orce, que sente o chão a tremer, apesar de nenhum instrumento de medição o registar; e também um cão dos Pirinéus, Joana Carda, Maria Guavaira e Roque Lozano, todos de alguma forma ligados a pormenores insólitos. Ora, no decurso da narrativa, todos estes personagens acabam por se encontrar e associar, numa viagem nómada que percorre o território da península num grande círculo. Editado numa época em que Espanha e Portugal tinha acabado de entrar na CEE, o livro levanta subtilmente a questão, se seria esse horizonte europeu, realmente, o que mais se adequava aos interesses das nações ibéricas.
José Saramago é um autor controverso, mas, na meia-dúzia de livros que li dele, agradou-me um certo recurso ao fantástico, que me parece aparentado do realismo mágico. Depois de ter lido O Ano da Morte de Ricardo Reis e Memorial do Convento, obras maiores da bibliografia do autor, cheguei a considerar parar por aí. Afinal, seis anos depois, voltei a Saramago...

Avançaram para o interior do círculo, aproximaram-se, o risco lá estava, vivo, como se tivesse sido acabado de traçar, a terra apartada para os lados, húmida a da camada inferior apesar do sol quente. Agora estão calados, os homens não sabem que dizer, Joana Carda não tem que acrescentar mais palavras, é a vez de um acto arriscado que pode tornar em motivo de escárnio toda a sua história maravilhosa. Arrasta o pé pelo chão, arrasa o risco como uma rasoira, pisa e calca, é como um sacrilégio. No instante seguinte, diante dos olhos assombrados de todos, o risco refaz-se, recompõe-se exactamente como fora antes, os torrões minúsculos, os grãos de areia reformam-se, reorganizam-se, reocupam o seu lugar, e o risco reaparece. Entre a parte que fora destruída e o resto, para um lado e para o outro, nenhum sinal se percebe de separação dos efeitos, primeiro e segundo. Diz Joana Carda, numa voz um pouco estridente de nervosismo, Já varri o risco todo, já lhe deitei água, aparece sempre, se quiserem experimentar, até lhe pus pedras em cima, quando as tirei voltou tudo à mesma, experimentem para poderem acreditar. Joaquim Sassa baixou-se, enterrou os dedos no chão fofo, arrancou um punhado de terra, lançou-o para longe, e acto contínuo o risco restabeleceu-se. Foi a vez de José Anaiço, mas esse pediu a vara a Joana Carda, fez com ela um risco profundo ao lado do primeiro, depois pisou-o em todo o comprimento. O risco não se refez. Faça você agora o mesmo, disse José Anaiço a Joana Carda. A ponta da vara cravou-se no chão, foi arrastada, abriu uma ferida longa, logo fechada como uma cicatriz defeituosa quando a calcaram, e assim ficou. Disse José Anaiço, Não é da vara, não é da pessoa, foi do momento, o momento é que conta.

Li anteriormente:
Memorial do Convento (1982)
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
As Intermitências da Morte (2005)

4 de setembro de 2016

Solaris


Stanislaw Lem
Solaris (1961)

De Stanislaw Lem apenas havia lido um único livro até hoje, A Nave Invencível, já lá vão demasiados anos para me recordar com clareza do argumento, tendo perdurado uma opinião positiva, apesar de o considerar um livro de leitura "difícil" – nada mau, para um leitor que acabara de completar 15 anos. Já Solaris, significava para mim o inesquecível filme de Andrei Tarkovski, que vi duas vezes, primeiro na televisão e depois no cinema, aguçando-me a curiosidade sobre a obra que lhe serviu de inspiração, na qual acabei por tropeçar, em tradução de português do Brasil.
E posso dizer que Solaris esteve à altura das minhas expectativas. Reconheci nele os pontos essenciais da adaptação cinematográfica, na história que decorre numa estação-observatório a pairar sobre um planeta coberto por um oceano plasmático, vivo, interactivo e consciente. Nessa estação permanecem três cientistas que sofrem daquilo que inicialmente tomam por alucinações, mas que são obra desse imenso organismo para além da compreensão: projecções materializadas do conteúdo cerebral do indivíduo, as impressões mais marcantes da sua memória, que o assombram e perseguem até à insanidade. É também uma estranha história de amor, entre Kris Kelvin, recém-chegado a Solaris, e Rheya, sua jovem mulher, morta dez anos antes, e inexplicavelmente materializada num ser que parece tornar-se cada dia emocionalmente mais complexo e distinto, desafiando simultaneamente a racionalidade e a linha de fronteira entre o ser humano e o seu duplicado autonomizado. Como pano de fundo – a comprovar como, tantas vezes, uma frase vale mais do que mil imagens –, os silêncios da obra cinematográfica têm aqui correspondência numa análise aprofundada do tema "contacto", com as suas implicações filosóficas, sociológicas e religiosas, tal como a identificação das armadilhas da interpretação antropomórfica, tanto mais quando o objecto desse "contacto" é um ser absolutamente ininteligível.

Quando tornei a abrir os olhos, tive a impressão de haver cochilado alguns minutos. O quarto estava banhado por uma penumbra vermelha. Fazia menos calor. Eu estava me sentindo bem, deitado, com as cobertas afastadas, inteiramente nu. A cortina só cobria metade da janela e lá, defronte de mim, ao lado da vidraça, iluminada pelo sol vermelho, havia alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um vestido de praia, branco, cujo tecido estava esticado no bico dos seios. Tinha as pernas cruzadas e pés descalços. Imóvel, com os braços abertos bronzeados até os cotovelos, olhava-me por entre os cílios escuros. Rheya, com seus cabelos pretos penteados para trás.
Encarei-a durante muito tempo, calmamente. Meu primeiro pensamento foi reconfortante: eu estava sonhando e consciente disso. Não obstante, preferia que ela sumisse. Fechei os olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu lado. Tinha os lábios entreabertos, como de costume, num gesto de assoviar.
Mas seu olhar era sério. Lembrei-me da véspera, quando fizera aquelas especulações a respeito dos sonhos. Rheya não havia mudado desde o dia em que a vira pela última vez. Tinha, naquela época, dezenove anos. Hoje teria vinte nove. Mas, evidentemente, os mortos não mudam, ficam eternamente jovens. Ela fixava-me com o olhar espantado de sempre. Tive vontade de atirar alguma coisa sobre ela. No entanto, apesar de se tratar de um sonho, não tive coragem – mesmo em sonho – de maltratar uma morta.

Li anteriormente:
A Nave Invencível (1964)

2 de setembro de 2016

Mundo del Fin del Mundo


Luis Sepúlveda
Mundo del Fin del Mundo (1994)

Mundo del Fin del Mundo é uma curta novela passada a dois tempos: os quatro capítulos que compõem a Primeira parte, de fundo autobiográfico, descrevem a aventura de férias escolares de um rapaz, influenciado pelo avô e pela leitura de Moby Dick, a quem é permitida uma viagem a bordo de um navio baleeiro nas imediações do Estreito de Magalhães. No restante, reencontramos já o adulto, que parte de Londres e regressa a essas paragens da infância, desta vez como um jornalista ligado à Greenpeace, empenhado na luta contra os modernos baleeiros e a caça ilegal que ameaça de extinção os cetáceos.

Hay que señalar que no son solamente los depredadores japoneses los que practican el juego de la doble moral que caracteriza a un mundo regido por la ética del mercado. Japón es uno de los siete países más ricos del planeta y un interlocutor fundamental; a veces hasta da la impresión de ser una nación con patente de corso. Por ejemplo: todos los países de Europa, Estados Unidos, la Unión Soviética y la mayoría de los Estados africanos condenan la caza del elefante y reconocen el peligro de extinción en que se encuentran los gigantes grises de África. Pero ningún país condena a Japón, el gran incentivador de la caza y el mayor comprador de marfil del planeta. De más está señalar que controla el mercado y que es el principal proveedor de marfil de Europa, Estados Unidos y la Unión Soviética. ¿Y para qué sirve el marfil? Toda su utilidad se limita a la fabricación de unos pocos artículos de lujo; con toda seguridad podemos afirmar que el talento de una Paloma O'Shea o de un Claudio Arrau no se verá disminuido al sentarse frente a pianos cuyo teclado no sea de marfil, y continuarán con sus formidables interpretaciones de Mozart o Scarlatti sin que para ello haya que exterminar animales de seis u ocho toneladas, de los cuales se obtienen cuarenta miserables kilos de marfil.

Li anteriormente:
Patagonia Express (1995)
Nombre de Torero (1994)
Un Viejo que Leía Novelas de Amor (1989)

21 de agosto de 2016

A Selva


Ferreira de Castro
A Selva (1930)

Ferreira de Castro foi, em tempos, o escritor português com maior número de traduções no estrangeiro. Da sua juventude passada no Brasil, à qual se refere no prólogo deste romance, recolheu certamente a inspiração para o enredo, a história de Alberto, um português a quem as circunstâncias levam aos confins da Amazónia, nas margens do rio Madeira, para trabalhar num seringal – na extracção da borracha – na época em que a matéria-prima começa a desvalorizar imparavelmente. É a descrição da grandiosidade desta selva indómita, e a sujeição dos homens a uma Natureza implacável, agravada por uma exploração quase esclavagista do seu trabalho, que fazem de A Selva um imenso quadro, que se percorre com curiosidade crescente.

Por toda a parte havia uma orquestra invisível, feita de aves trinando melodias diferentes, que se diluíam frequentemente num ritmo tão suave que era quase o silêncio verificado, na véspera, por Alberto, mas agora mais vivo, mais alvoroçante e integrado no esplendor da manhã.
De quando em quando, como se alternassem, subia pelas narinas, perturbando o olfacto, um cheiro forte de húmus em combustão, de troncos e folhagem apodrecendo no solo negro e húmido; ou então errava, por largos trechos, um aroma de ignorado jardim, perfume original e precioso como nunca o recolheram os frascos caprichosos da França.
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo.
O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.
Vista uma légua parecia ter-se visto tudo. Só a água, presa nos lagos ou deslizando nos rios e igarapés, quebrava, com a abertura de clareiras, o emaranhado aparentemente uniforme. E, contudo, havia ali uma variedade vegetal assombrosa, com milhentos indivíduos diferentes a confundirem-se e a engalfinhar-se mutuamente, como numa raiva surda, – eviterna, mas quase sempre com a mesma expressão. Daquela bárbara grandiosidade e da sua estranha beleza, uma só forte impressão ficava – a inicial; que nunca mais se esquecia e nunca mais também se voltava a sentir plenamente. Solo de constantes parturejamentos; obstinado na ânsia-de-criar, a sua cabeleira, contemplada por fora, sugeria vida liberta num mundo virgem, ainda não tocado pelos conceitos humanos, vista por dentro, oprimia e fazia anelar a morte. Só a luz obrigava o monstro a mudar de fisionomia, revelando as suas pesadas atitudes, mas persistindo sempre no seu ar enigmático.

17 de agosto de 2016

Wilt on High


Tom Sharpe
Wilt on High (1984)

Na terceira dose das desventuras de Henry Wilt, reencontramos o nosso protagonista nas alhadas habituais, acompanhado das personagens já conhecidas: a sua mulher Eva, as quatro filhas gémeas, o inspector Flint, o sargento Yates, e alguns professores e funcionários da escola de adultos onde Henry tenta dar lições de literatura a alunos desinteressados.
Desta vez, a morte por overdose da filha de um lorde na escola de Wilt, à qual se junta outra morte, em circunstâncias idênticas, de um presidiário a quem Wilt proporcionava explicações de literatura, é o pretexto encontrado por Flint para pôr a investigação – mais concretamente o Inspector Hodge, dos Narcóticos, a quem despreza – no encalço de Wilt, na tentativa de exercer a sua vingança, por razões descritas nos livros anteriores da série, e simultaneamente fazer com que Hodge enfie o pé na argola.

Twenty minutes later, Eva, who had been intercepted by Mavis on her way home, drove up to the house.
'Henry,' she shouted as soon as she was inside the front door. 'You come straight down here and explain what you were doing with Mavis.'
'Sod off,' said Wilt.
'What did you say?'
'Nothing. I was just groaning.'
'No, you weren't. I distinctly heard you say something,' said Eva on her way upstairs.
Wilt got out of bed and girded his loins with the water bottle. 'Now you just listen to me,' he said before Eva could get a word in. 'I've had all I can stand from everybody, you, Mavis-moron-Mottram, that poisoner Kores, the quads and the bloody thugs who've been following me. In fact the whole fucking modern world with its emphasis on me being nice and docile and passive and everyone else doing their own thing and to hell with the consequences. (A) I am not a thing, and (B) I'm not going to be done any more. Not by you, or Mavis, or, for that matter, the damned quads. And I don't give a tuppenny stuff what received opinions you suck up like some dehydrated sponge from the hacks who write articles on progressive education and sex for geriatrics and health through fucking hemlock--'
'Hemlock's a poison. No one...' Eva began, trying to divert his fury.
'And so's the ideological codswallop you fill your head with,' shouted Wilt. 'Permissive cyanide, page three nudes for the so-called intelligentsia or video nasties for the unemployed, all fucking placebos for them that can't think or feel. And if you don't know what a placebo is, try looking it up in a dictionary.'
He paused for breath and Eva grabbed her opportunity. 'You know very well what I think about video nasties,' she said, 'I wouldn't dream of letting the girls see anything like that.'
'Right,' yelled Wilt, 'so how about letting me and Mr bleeding Gamer off the hook. Has it ever occurred to you that you've got genuine non-video actual nasties, pre-pubescent horrors, in those four daughters? Oh no, not them. They're special, they're unique, they're flipping geniuses. We mustn't do anything to retard their intellectual development, like teaching them some manners or how to behave in a civilized fashion. Oh no, we're your modern model parents holding the ring while those four ignoble little savages turn themselves into computer-addicted technocrats with about as much moral sense as Ilse Koch on a bad day.'
'Who's Ilse Koch?' asked Eva.
'Just a mass murderess in a concentration camp,' said Wilt, 'and don't get the idea I'm on a right-wing, flog 'em and hang 'em reactionary high because I'm not, and those idiots don't think either. I'm just mister stick-in-the-middle who doesn't know which way to jump. But my God I do think! Or try to. Now leave me in peace and discomfort and go and tell your mate Mavis that the next time she doesn't want to see an involuntary erection, not to advise you to go anywhere near Castrator Kores.'
Eva went downstairs feeling strangely invigorated. It was a long time since she'd heard Henry state his feelings so strongly and, while she didn't understand everything he'd said, and she certainly didn't think he'd been fair about the quads, it was somehow reassuring to have him assert his authority in the house. It made her feel better about having been to that awful Dr Kores with all her silly talk about...what was it?...'the sexual superiority of the female in the mammalian world'. Eva didn't want to be superior in everything and anyway, she wasn't just a mammal. She was a human being. That wasn't the same thing at all.

Li anteriormente:
Wilt (1976)
The Alternative Wilt (1979)

16 de xullo de 2016

Clarissa

Érico Veríssimo
Clarissa (1933)

Érico Veríssimo foi, para mim, a melhor descoberta da literatura brasileira. Gostei sobretudo do tríptico O Tempo e o Vento, de uma dimensão épica, uma epopeia familiar entretecida na própria História da sua pátria, comparável a um Guerra e Paz. Já Clarissa é completamente diferente: trata-se do primeiro romance de Veríssimo, com o nome que viria a dar à sua primeira filha.
Clarissa é a história de uma adolescente a completar 14 anos, filha de agrários, no seu último ano de escola, à descoberta da vida. Vive na cidade, com a tia D. Eufrasina, proprietária de uma pensão, e ali se assiste ao desfilar das personagens secundárias que com ela se cruzam: O Tio Couto, desempregado e, aparentemente, pouco amigo do trabalho, permanentemente a zurzir no governo; Nico Pombo, o major reformado que conta e reconta as suas velhas histórias de guerra; Amaro, o apagado e ausente empregado bancário e compositor frustrado; Tonico, o menino inválido da casa ao lado, cuja deficiência tolhe até os seus sonhos; Dudu, a desinibida amiga de Clarissa, detestada por D. Zina que a considera uma “desfrutável”; as eternas discussões entre Levinsky, o judeu marxista, e o farmacêutico protestante Gamaliel; e todas as peripécias que, com frescura e algum humor, Érico Veríssimo vai alinhando nesta novela despretensiosa.

— Clarissa, vem prà mesa!
A voz aguda de D. Eufrasina apaga impiedosamente a imagem do palhaço e do cortejo de moleques. Amaro volta à tona...
— Que história é essa? — pergunta Tio Couto. — O seu Amaro está enjoando a nossa comida?
Só agora Amaro percebe que nem tocou nos talheres. Balbucia desculpas.
Estava esquecido até do almoço. Sempre o velho vício. Sonhando, devaneando, enquanto os outros conversam, gesticulam, vivem de verdade. É por isso que não há-de passar nunca de simples funcionário de banco. A música não lhe dá dinheiro. Os editores sempre vêm com a mesma desculpa:
— Nós sabemos que o senhor tem talento, que sabe compor, mas infelizmente o nosso público quer é sambas e fox-trotes. Escreva uma marchinha para o Carnaval que vem, um samba ou coisa que o valha e nós editaremos a música por nossa conta.
Nestas ocasiões Amaro pensava sempre no carão severo e inflexível de Beethoven. E tinha vontade de dizer num cicio de oração: «Mestre, não faça caso, eles não sabem o que dizem...»
E assim vivia ele dentro do sonho, alheio ao mundo objectivo. Perdia aquilo a que os homens práticos chamam oportunidade. Cumpria o seu destino obscuro, de contemplativo.
Mas ia ficando para trás: sem dinheiro, sem amigos, sem glória, sem nada — na sombra: uma vida mais apagada que a do Micefufe, o gato da casa. Porque o Micefufe, enfim, se afirma: luta contra os camundongos; luta e vence-os. O Micefufe anda pelos telhados nas noites de lua e ama as gatas da vizinhança.
— Se o senhor, seu Amaro, não fosse tão distraído, seria um óptimo funcionário. Tem até uma letra muito boa...
Só de pensar na opinião do contador do banco, Amaro sente um mal-estar desconfortante. Quando terminará o conflito? Conflito com a vida, com os homens que andam pela vida a se magoarem uns aos outros, a disputar lugares aos encontrões e cotoveladas? Cada dia que passa é uma tortura que se repete. O expediente do banco, o tá-tá-tá das máquinas de escrever, os cavalheiros que discutem juros de mora, taxas, câmbios; contínuos que passam com pastas gordas de papéis cheios de algarismos; e homens inclinados sobre as carteiras, escrevendo, registando, calculando... E a fúria de uns para conseguirem juros mais vantajosos, e o desespero de outros por não poderem pagar os títulos vencidos, e as ameaças de protesto, e mais juros, e mais cálculos, e números, números, números, afogando, esterilizando, complicando, matando.
Só de pensar naquelas coisas Amaro sente arrepios.

Li anteriormente:
Olhai os Lírios do Campo (1938)
O Tempo e o Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)
O Tempo e o Vento, vol. II – O Retrato (1951)

3 de xullo de 2016

O Avatar

Poul Anderson
O Avatar (1978)

De Poul Anderson, um autor estado-unidense com inúmeros títulos publicados e razoavelmente conhecido nos meios FC, já tinha lido meia dúzia de livros – o último dos quais há mais de 20 anos. Desses seis livros, apenas um não tinha sido editado nos anos 50 e, ao decidir ler O Avatar, sabia que corria um certo risco: em 1978 a Era Dourada da FC tinha ficado muito para trás, e as críticas ao livro eram globalmente desfavoráveis, tanto ao nível do argumento como da extensão do texto. Foi por isso com baixas expectativas que me dediquei à leitura desta obra.
O argumento parte de uma ideia recorrente na literatura deste género: o ser humano encontra uma máquina alienígena que lhe permite fazer viagens interplanetárias, mesmo sem entender o seu princípio de funcionamento. Neste caso particular, inspirado por alguma especulação científica da época acerca da utilização do força gravitacional como forma de dominar o espaço-tempo, conforme se explica no prefácio.
A história inicia-se num ponto em que o ser humano coloniza já um segundo planeta, Deméter, após ter encontrado uma máquina T no Sistema Solar. Essa máquina T, encontrada numa órbita estável, com uma mensagem de boas-vindas, permite o acesso a Deméter no Sistema de Febo, uma espécie de «oferta» dos Outros, nome que designa os seus desconhecidos construtores. E embora o método de acesso a Deméter e o regresso à Terra tenha sido revelado, todas as outras tentativas humanas na procura de outros destinos, com sondas enviadas pelas máquinas T, fracassaram.
A trama complica-se no momento em que uma nave de exploração, guiada por uma nave alienígena, consegue fazer o percurso de ida e volta ao Sistema de Febo, depois de conseguir o contacto e a ajuda desses alienígenas: os betanos – também simples utilizadores das máquinas T, embora um pouco mais evoluídos tecnologicamente do que os humanos. Uma facção política da Terra (e Deméter) na posse dessa informação, esforça-se por mantê-la secreta a todo o custo, por considerar que a descoberta iria desviar os recursos da humanidade e dispersá-los na exploração espacial.
É aqui que entra em acção Dan Brodersen, que com uma pequena nave e uma tripulação composta de alguns fiéis e de elementos resgatados à nave de exploração já mencionada, decide arriscar tudo para divulgar a verdade que os políticos desejam ocultar. Afrontando forças poderosas, decide fugir num rumo desconhecido, através da máquina T, o que dá origem a um périplo por uma série de mundos, na procura dos Outros, e da própria sobrevivência.
O Avatar é, de facto, desnecessariamente extenso; alguns capítulos poderiam ter sido cortados sem se perder nada de essencial. Com metade das páginas, e despojado de uma certa pseudo-espiritualidade que o autor nos tenta impingir, O Avatar podia ter sido bem mais interessante.

Trevas, nada. Negrura e absoluto. Aquela gente lamentava-se numa espécie de terror.
As balizas em torno da máquina T não eram candeias — vermelha, violeta, esmeralda, âmbar — acesas na maldita escuridão. Brilhavam perdidas e débeis, como se de um momento para o outro se pudessem apagar. Depois ao longe, no meio de luzes mais frouxas que mal se viam, os olhos descobriam um simples ponto de luz.
— Acalma-te — ordenava uma parte de Joelle que ela destacava de si mesmo para isso. — Não corremos perigo imediato. Vou investigar.
Reunificou a sua mente. Com os órgãos da nave e com os seus próprios sentidos começou a desbravar o desconhecido.
O radar trouxe-lhe a imagem daquele cilindro a girar. Era o maior que até aí haviam encontrado. Na ausência de gravidade, Joelle sentia, apesar de tudo, aquela massa e a energia que ela continha. Os meios ópticos e a rádio, vastamente ampliados, mostravam-lhe estrelas espalhadas em pequeno número e por largas distâncias, como brasas já a cobrirem-se de cinzas, a caminharem para a extinção. Em torno do casco era quase o vácuo total. Toda a radiação e todas as partículas materiais que ela conhecia tinham desaparecido quase por completo, deixando uma cavidade a que não fazia sentido chamar vazia ou fria. Joelle procurou e encontrou galáxias próximas, tão calcinadas como esta. As suas formas eram caóticas. Joelle tentou encontrar agrupamentos completos delas, e teria possibilidade de vislumbrar algumas das mais próximas, tais como as do grupo da Virgo, pelos derradeiros fotões que houvessem irradiado; mas não conseguiu. Haviam desaparecido demasiado rapidamente.
A atenção de Joelle voltou-se de novo para o que mais próximo a rodeava. Os instrumentos haviam acumulado dados suficientes para ela deduzir que a máquina girava em órbita em torno de um sol completamente extinto. Semelhante ao Sistema Solar, ele nunca tinha explodido, por ser demasiado pequeno, mas passou pelas fases de gigante vermelho e por outras fases variáveis, contraiu-se até ficar um globo do tamanho de um planeta de densidade máxima, onde os átomos podiam ainda continuar a ser átomos, e arrefecer lentamente, de calor branco para uma massa de escórias. Ficaram alguns verdadeiros planetas, rochas nuas ou cobertos pelas suas próprias atmosferas geladas.
Salvo um...
Joelle lembrou-se de que tinha de descer das alturas para dizer à sua gente aquilo que havia sido revelado dentro dela.
— Estamos no futuro remoto... Espacialmente, de novo no interior da galáxia, mas no tempo qualquer coisa entre setenta e cem biliões de anos depois de termos nascido. Não restam mais estrelas vivas a não ser as mais pálidas (bem-aventurados os simples porque deles é o reino dos céus) e estão agora a morrer, enquanto a própria galáxia se está a desintegrar. O universo expandiu-se e atingiu quatro ou cinco vezes as dimensões que tinha nos nossos dias. Se avançarmos muito ainda, julgo que saberemos se ele realmente se continuará a expandir para todo o sempre ou se, no fim de contas, é verdadeira a velha ideia de que acabará por implodir, retraindo-se para o interior de si mesmo e transformando-se em nova bola de fogo e em novo cosmos.

Li anteriormente:
Essas Estrelas São Nossas (1959)
A Hora da Inteligência (1954)
Espião Interestelar (1966)

9 de xuño de 2016

El Informe de Brodie

Jorge Luis Borges
El Informe de Brodie (1970)

El Informe de Brodie (conhecido em português sob o título O Relatório de Brodie) reúne onze curtos contos, em que o último dá o nome ao livro. Sem os enigmas e os labirintos que caracterizavam as suas recolhas anteriores, o próprio Borges escreve no prefácio que estes contos são «directos», sem se atrever a afirmar que são «simples» (pois não existirá, na sua opinião, uma única palavra no universo que o seja). Toma como modelo Rudyard Kipling e os seus contos de Plain Tales from the Hills, entre os quais considera existir «não poucas [...] lacónicas obras-primas». Caracterizados por um enquadramento de violência mais ou menos explícita, o trecho que escolhi pertence a «Historia de Rosendo Juárez», uma espécie de continuação de «Hombre de la Esquina Rosada» da Historia Universal de la Infamia.

En el almacén, una noche me empezó a buscar un mozo Garmendia. Yo me hice el sordo, pero el otro, que estaba tomado, insistió. Salimos; ya desde la vereda, medio abrió la puerta del almacén y dijo a la gente:
—Pierdan cuidado, que ya vuelvo enseguida.
Yo me había agenciado un cuchillo; tomamos para el lado del Arroyo, despacio, vigilándonos. Me llevaba unos años; había visteado muchas veces conmigo y yo sentí que iba a achurarme. Yo iba por la derecha del callejón y él iba por la izquierda. Tropezó contra unos cascotes. Fue tropezar Garmendia y fue venírmele yo encima, casi sin haberlo pensado. Le abrí la cara de un puntazo, nos trabamos, hubo un momento en el que pudo pasar cualquier cosa y al final le di una puñalada, que fue la última. Sólo después sentí que él también me había herido, unas raspaduras. Esa noche aprendí que no es difícil matar a un hombre o que lo maten a uno. El arroyo estaba muy bajo; para ir ganando tiempo, al finado medio lo disimulé atrás de un horno de ladrillos. De puro atolondrado le refalé el anillo que él sabía llevar con un zarzo. Me lo puse, me acomodé el chambergo y volví al almacén. Entré sin apuro y les dije:
—Parece que el que ha vuelto soy yo.
Pedí una caña y es verdad que la precisaba. Fue entonces que alguien me avisó de la mancha de sangre.

Li anteriormente:
Ficciones (1944/1956)
El Aleph (1949/1952)
Historia Universal de la Infamia (1935/1974)

6 de xuño de 2016

A Sonda do Tempo


Arthur C. Clarke / vários autores
A Sonda do Tempo (1966)

Uma antologia de contos de vários autores de FC, organizada por um dos nomes sonantes do género, não é um acontecimento raro; já tive oportunidade de ler obras neste formato, editadas ou organizadas por Isaac Asimov ou Bruce Sterling. A Sonda do Tempo (Time Probe no título original) compõe-se de 11 contos que incluem o Take A Deep Breath (ou Respire Fundo), do próprio Arthur C. Clarke, que eu já conhecia da sua colectânea O Outro Lado do Céu. Os outros autores incluídos são Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, Julian Huxley (irmão de Aldous Huxley), Cyril M. Kornbluth, Philip Latham, Murray Leinster, James H. Schmitz, Robert Silverberg, Theodore L. Thomas e Jack Vance. Os contos datam entre 1927 e 1962, e Arthur C. Clarke fez a sua selecção de modo que cada um deles ilustrasse um aspecto particular da ciência ou tecnologia – matemática, arqueologia, medicina, biologia, etc.
É difícil – para não dizer injusto – destacar qualquer dos contos; mas, para o excerto abaixo citado escolhi o primeiro, de Robert A. Heilein, intitulado ... E Ele Construiu Uma Casa Torta, que tem por tema uma casa tetradimensional, por aplicação da geometria não euclidiana, concebida por um arquitecto chamado Quintus Teal que, após uma conversa com um amigo, bem regada de conhaque, o convence a financiá-la. Depois de considerarem as dificuldades burocráticas, decidem-se por um desdobramento tridimensional dessa forma geométrica (da mesma forma que a cruz latina é um desdobramento bidimensional de um cubo). Uma vez construído o edifício, e na consequência de um pequeno incidente, o arquitecto, o amigo e a mulher deste, na visita inaugural, vêem-se aprisionados numa casa de geometria inesperada onde, por exemplo, se se caminhar sempre no mesmo sentido volta-se ao ponto de partida, ou ao espreitar por uma janela nunca se vê o que seria de esperar (e, a partir daqui. as coisas só tendem a piorar...)

Do ponto de vista dos Baileys ele simplesmente desapareceu.
Mas não do seu. Levou alguns segundos para recuperar o fôlego. Então, cautelosamente, soltou-se da roseira com a qual ficara quase que irrevocavelmente entrelaçado, tomando mentalmente nota de nunca mais encomendar ajardinamento que incluísse plantas com espinhos, e olhou em volta.
Estava do lado de fora da casa. O volume compacto da sala do andar térreo elevava-se ao seu lado. Aparentemente, caíra do telhado.
Dobrou a esquina da casa correndo, abriu a porta da frente, com violência, e subiu correndo as escadas. — Homer! — chamou. — Sra. Bailey! Encontrei uma saída!
Bailey pareceu mais aborrecido do que contente em vê-lo. — O que foi que aconteceu com você?
— Caí para fora. Estive do lado de fora da casa. Vocês podem fazer isso com a mesma facilidade — apenas atravessem essas portas-janelas. Cuidado com a roseira, talvez tenhamos que construir outra escada.
— Como foi que voltou a entrar?
— Pela porta da frente.
— Então sairemos da mesma maneira. Venha, querida. — Bailey enfiou, resolutamente, o chapéu na cabeça e desceu as escadas com passo firme, a esposa agarrada ao seu braço.
Teal encontrou-os na saleta. — Eu podia ter-lhes dito que isso não funcionaria — observou. — Agora, eis o que devemos fazer: do modo como vejo as coisas, numa figura quadridimensional, um homem tridimensional tem duas escolhas cada vez que cruza uma linha de junção, como uma parede ou um limiar. Comumente, ele fará uma volta de noventa graus na quarta dimensão, só que não sentirá isso nas suas três dimensões. Olhem. — Teal atravessou a mesma janela pela qual caíra há poucos momentos. Atravessou-a e chegou à sala de jantar, bem onde estava, ainda falando.
— Observei onde ia e cheguei onde tencionava. — Voltou para a saleta. — Da outra vez não prestei atenção, desloquei-me através do espaço normal e caí para fora da casa. Deve ser um caso de orientação subconsciente.
— Detestaria ter de depender de orientação subconsciente quando saio de manhã para apanhar o jornal.
— Você não terá de fazê-lo; tornar-se-á automático. Bem, para sair da casa, desta vez — Sra. Bailey, se a senhora ficar de pé aqui, com as costas para a janela e pular para trás, tenho absoluta certeza de que a senhora aterrissará no jardim.
O rosto da Sra. Bailey expressava sua opinião sobre Teal e suas idéias. — Homer Bailey — disse ela com voz esganiçada, —, você vai ficar parado aí e deixar que ele sugira uma coisa des...
— Mas, Sra. Bailey — tentou explicar Teal —, podemos amarrar uma corda na senhora e baixá-la fácil.
— Esqueça, Teal — interrompeu Bailey, bruscamente. — Vamos ter de encontrar coisa melhor do que essa. Nem a Sra. Bailey nem eu estamos em condições de pular.

1 de xuño de 2016

Sumisión


Michel Houellebecq
Sumisión (2015)

Confesso que nunca tinha ouvido falar de Michel Houellebecq antes da publicação de Submissão, e da polémica que levantou. Pensei, erradamente, que se tratava de uma obra de estreia; afinal Houellebecq já publicava há mais de vinte anos e contava um punhado de prémios literários.
A novela decorre em 2022, no contexto das eleições presidenciais francesas, onde um candidato islâmico “moderado”, líder da Irmandade Muçulmana, apoiado por uma “frente republicana” que inclui socialistas, sociais-democratas e liberais, derrota tangencialmente a candidata da Frente Nacional. No centro da narrativa está François, um professor universitário de literatura (e fala-se bastante sobre literatura e filosofia), despolitizado e desenraizado – com uma preferência especial pela obra de Joris-Karl Huysmans, sobre o qual fez a sua tese – que vê o seu pequeno mundo desabar aos pedaços.
Sumisión (Soumission no original – optei pela tradução em espanhol) é um livro em tom crepuscular, que antecipa uma França à beira do abismo islâmico, tentando alinhar algumas pistas que possam responder à pergunta «como foi possível chegarmos a isto?» E temos, assim, em primeiro lugar, a nossa própria responsabilidade, quando nos deixamos enredar nos vários cantos de sereia destinados a levar a nossa sociedade ao suicídio; depois, a cegueira (para não dizer mais) dos actuais dirigentes políticos, extrapolados para este futuro próximo; o falhanço da democracia, no cada vez maior afastamento entre as opções da classe política e o sentir da sua base de apoio; a manipulação e o boicote noticioso das grandes cadeias de informação levados às últimas consequências (já em marcha actualmente: é raro o noticiário onde não se veja um barco de “refugiados”, mas nada se conta sobre as violações, assassínios e outra criminalidade violenta praticada diariamente por esses “migrantes” em território europeu). Por fim, a submissão pacífica à sharia, tanto por parte da esquerda, paralisada nas suas próprias contradições, como pela direita conservadora e pragmática que, no fundo, não se sente demasiado afectada com as novas leis...

—Es curioso —dijo finalmente Lempereur—, cómo nos mantenemos apegados a los autores a los que nos dedicamos al principio de nuestra vida. Podría parecer que al cabo de uno o dos siglos, las pasiones se extinguen y como universitarios accedemos a una especie de objetividad literaria, etcétera. Pues para nada. Huysmans, Zola, Barbey, Bloy, todas esas personas se conocieron, tuvieron relaciones de amistad o de odio, se aliaron, se enfadaron, la historia de sus relaciones es la de la literatura francesa; y nosotros, a más de un siglo de distancia, reproducimos esas mismas relaciones, mantenemos nuestra fidelidad al que fue nuestro campeón, seguimos dispuestos a amarnos, enfadarnos y pelear por él a golpe de artículo.
—Lleva razón, pero eso es bueno y prueba por lo menos que la literatura es un asunto serio.
—Nadie se enfadó nunca con el pobre Nerval... — intervino Alice, pero Lempereur ni siquiera la oyó, creo, seguía mirándome con intensidad, ensimismado en su discurso.
—Usted siempre ha sido una persona muy seria —prosiguió—, he leído todos sus artículos en el Journal. No es ése mi caso. Estaba fascinado por Bloy cuando tenía veinte años, fascinado por su intransigencia, su violencia, su virtuosismo en el desprecio y en el insulto; pero era también, y mucho, un fenómeno de moda. Bloy era el arma absoluta contra el siglo XX con su mediocridad, su idiotez militante, su humanitarismo repelente; contra Sartre, contra Camus, contra todos los payasos del compromiso; también contra todos los formalistas nauseabundos, el nouveau roman y todas esas absurdidades sin consecuencia. Bueno, ahora tengo veinticinco años y siguen sin gustarme Sartre, ni Camus, ni nada que se parezca al nouveau roman; pero el virtuosismo de Bloy se me ha vuelto pesado, y tengo que reconocer que la dimensión espiritual y sagrada en la que se regodea ya no me evoca casi nada. Ahora me gusta más releer a Maupassant o a Flaubert, o incluso a Zola, por lo menos algunas páginas. Y también, por supuesto, al muy curioso Huysmans...