24 de agosto de 2017

Volfrâmio

Aquilino Ribeiro
Volfrâmio (1943)

Os restos mortais de Aquilino Ribeiro foram trasladados em 2007 para o Panteão Nacional, facto que, nos tempos que correm, não constitui propriamente a melhor das recomendações. O escritor associou-se, durante a juventude, à maçonaria e ao terrorismo carbonário, foi perseguido e encarcerado por conspiração durante a Monarquia. Após a Revolução Nacional de 1926 foi novamente preso, por participação numa revolta, e evadiu-se para França, onde já tinha permanecido em diferentes períodos desde a implantação da República. A partir de 1933, com a atribuição de prémios literários e o reconhecimento da sua obra, Aquilino parece ter esmorecido a veia «activista», excepção feita no apoio da candidatura à presidência de Humberto Delgado, em 1957; contudo, nunca deixou de ser persona non grata no Estado Novo. É considerado um dos romancistas portugueses mais notáveis da primeira metade do séc. XX, e este título está entre os mais representativos da sua obra.
Volfrâmio decorre nos anos da II Guerra Mundial, num ambiente de ruralidade que há muito desapareceu. A exploração desse minério valioso, disputado na indústria bélica, e a miragem de riqueza que proporciona da noite para o dia, afecta profundamente a aldeia e o quotidiano de quantos nela vivem, modificando comportamentos, corroendo a comunidade, deixando um rasto de morte. O volfrâmio, diz uma personagem, «...só lhes serviu para ganhar vícios e maus costumes. Como havia de dar pão uma coisa que é para matar...?!»
A prosa de Volfrâmio é escorreita e atractiva, apesar da catadupa de regionalismos e da escolha de um vocabulário que me obrigaram a interromper constantemente a leitura — obrigado, Priberam!

Lavradores patudos, tão fonas como suspicazes, que noutros tempos seriam insusceptíveis de arriscar uma coroa com o veterinário, se tinham a vaca doente, ou ir à consulta do subdelegado de saúde, se lhes sobreviesse uma tifóide, associavam-se uns com os outros, desmentindo o princípio de que o português era um primário na fase da inaglutinação.
Associavam-se às três pancadas e um pouco à toa revolviam o solo onde aflorasse veio de quartzo, ou qualquer filão encasquetado em granito, rasgando valados e fojos absurdos. Por montes e vales a terra aparecia picada desta furunculose, esvurmadoiros de saibro e rimas de pedra, estilhaçada a pólvora bombardeira e a gatilho. O resultado as mais das vezes era calamitoso. Mas no meio da vesânia geral não havia maneira de um insucesso pôr entraves aos despaurérios da cobiça. Cavavam onde lhes sugeria o sonho, onde punham nada mais que o palpite, à falta dum indicador no género do Livro de S. Cipriano, e em muitos casos sem outra razão que a de serem donos de duas aguilhadas de saibro ou de fraga.
— Vamos experimentar na belga — avisava-se de dizer um belo dia o visionário à tribo congregada. — Pode ser que lá se encontre mamara.
A mamara era o volfro, porque às qualidades nutritivas do leite maternal reunia a vantagem de ser grato Deo. E, dito e feito, viravam a courela desde os penetrais ao húmus. Esgaivavam na seara e no maninho, por baixo das casas e das ruas, e para as bandas do Ladário o fosso foi de tal ordem que se assapou sobre os pesquisadores a capela dum santo. Nas arribas a pique do Cairria, cerca da ponte da Mizarela, trabalhavam firmados em andaimes sucessivos, suspensos por amarras do alto cairel. Uma martelada imprudente cortou a corda e três homens vieram britar-se nos abismos rochosos da torrente. Aqui era uma família que fazia a lavra por sua conta e risco, além um poviléu inteiro que, animado de espírito comunal, manobrava a toque de sino a picareta e a enxada. E acontecia da manhã para a noite ficarem uns podres de ricos, devorarem outros o seu e o alheio.

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