23 de setembro de 2017

Tortilla Flat

John Steinbeck
Tortilla Flat (1935)

Tortilla Flat é o nome de um morro nos arrabaldes pobres de Monterey, na costa californiana, habitado por hispânicos, italianos, índios e outros desfavorecidos da escala social. Aqui conhecemos Danny, vadio e alcoólico, a quem calha em herança um par de casas degradadas. Pilon, seu amigo de desventura, faz um trato de arrendamento da casa mais pequena, que ambos sabem não ser para cumprir, pois vivem na penúria e cada dólar que conseguem arranjar serve para comprar vinho. Sucessivamente vão sendo apresentados Pablo, Jesus Maria, o Pirata e os seus cinco cães, Big Joe Portagee, outros tantos vadios, ao longo de capítulos que descrevem situações diferentes mas conclusivas, numa estrutura semelhante aos episódios de uma série televisiva. Entretanto a segunda casa arde, e todos se mudam para a casa de Danny.
Tortilla Flat, que em português foi titulado como O Milagre de S. Francisco ou Boêmios Errantes, é uma novela escrita num registo leve, com descrições cheias de humor. As personagens, quase todas dependentes do vinho, arranjam as desculpas mas esfarrapadas para justificar perante si próprias a cedência ao seu vício, tentando convencer-se que, quando fazem algo em seu próprio benefício, o fim último dos seus actos é o altruísmo. Não se pense contudo que Steinbeck atribuiu as estas personagens um mau carácter, ou que quis gozar com a pobreza. Pelo contrário, estas almas simples não regateiam a amizade e também são capazes de se entreajudar com pouco que podem oferecer.

Time is more complex near the sea than in any other place, for in addition to the circling of the sun and the turning of the seasons, the waves beat out the passage of time on the rocks and the tides rise and fall as a great clepsydra.
Danny began to feel the beating of time. He looked at his friends, and saw how with them every day was the same. When he got out of his bed in the night and stepped over the sleeping paisanos, he was angry with them for being there. Gradually, sitting on the front porch, in the sun, Danny began to dream of the days of his freedom. He had slept in the woods in summer, and in the warm hay of barns when the winter cold was in. The weight of property was not upon him. He remembered that the name of Danny was a name of storm. Oh, the fights! The flights through the woods with an outraged chicken under his arm! The hiding places in the gulch when an outraged husband proclaimed feud! Storm and violence, sweet violence! When Danny thought of the old lost time, he could taste again how good the stolen food was, and he longed for that old time again. Since his inheritance had lifted him, he had not fought often. He had been drunk, but not adventurously so. Always the weight of the house was upon him; always the responsibility to his friends.
“Tea made from yerba buena will be good,” Pilon suggested. “If you will go to bed, Danny, we will put hot rocks to your feet.”
It was not coddling Danny wanted, it was freedom. For a month he brooded, stared at the ground, looked with sullen eyes at his ubiquitous friends, kicked the friendly dogs out of his way.
In the end he gave up to his longing. One night he ran away. He went into the pine woods and disappeared.

Li anteriormente:
A um Deus Desconhecido (1933)
O Inverno do Nosso Descontentamento (1962)

10 de setembro de 2017

Las Fuerzas Extrañas

Leopoldo Lugones
Las Fuerzas Extrañas (1906)

A obra de Leopoldo Lugones estende-se à poesia, ao ensaio, aos estudos académicos e também à narrativa breve, onde foi um brilhante percursor dessa tradição argentina à qual se dedicou durante mais de quarenta anos. Esta faceta está reunida, de forma não exaustiva, em quatro livros publicados entre 1905 e 1924.
Las Fuerzas Extrañas é um desses livros, composto por doze contos seguido de uma cosmogonia esotérica, escritos entre 1897 e 1906; três ou quatro contos seguem uma linha de proto-FC com afinidades a H.G. Wells e os restantes debruçam-se sobre questões parapsicológicas ou metafísicas, ou remetem para o campo mitológico ou lendário, alguns deles em aproximação ao universo de Edgar Allan Poe. Cada um destes doze contos, segundo o prefácio, explora temas caros à teosofia. O texto final tem características diferentes: é a transcrição de um relato, em dez lições, a que se somam um prólogo e um epílogo dados pelo ouvinte desse relato, destinado a fornecer o enquadramento teórico geral para os textos que o precedem.
Las Fuerzas Extrañas vinha referenciado como um pioneiro da ficção-científica argentina. Mas não será bem assim – no cômputo geral insere-se melhor na literatura fantástica de tradição romântica. De grande utilidade é o “estudo preliminar”, à laia de prefácio, de Pedro Luis Barcia, que analisa detalhadamente cada um dos textos e fornece o adequado contexto.

Apenas dos o tres especies de aves cuyas alas no tenían plumas, sino escamas como las de las mariposas, y cuyo tornasol preludiaba el oro inexistente, remontaban su vuelo por la atmósfera fosfórica.
Era ella tan elevada, y el vuelo tan vasto, que las llevaba cerca de la luna. El arrebato magnético del astro solía embriagarlas; y como éste poseía entonces una atmósfera en contacto con la terrestre, afrontábanla en ímpetu temerario yendo a caer exánimes sobre sus campos de hielo.
Una vegetación de hongos y de líquenes gigantes arraigaba en las aún mal seguras tierras; y no lejanos todavía del animal, en la primitiva confusión de los orígenes, algunos sabían trasladarse por medio de tentáculos; tenían otros, a guisa de espinas, picos de ave, que estaban abriéndose y cerrándose; otros fosforecían a cualquier roce; otros frutaban verdaderas arañas que se iban caminando y producían huevos de los cuales brotaba otra vez el vegetal progenitor. Eran singularmente peligrosos los cactus eléctricos que sabían proyectar sus espinas.
Los elementos terrestres se encontraban en perpetua inestabilidad. Surgían y fracasaban por momentos disparatadas alotropías. La presión enorme apenas dejaba solidificarse escasos cuerpos. Las rocas actuales dormían el sueño de la inexistencia. Las piedras preciosas no eran sino colores en las fajas del espectro.
Así las cosas, sobrevino la catástrofe que los hombres llamaron después diluvio; pero ella no fue una inundación acuosa, si bien la causó una invasión del elemento líquido. El agua tuvo intervención de otro modo.

1 de setembro de 2017

Revolta Contra o Mundo Moderno



Julius Evola
Revolta Contra o Mundo Moderno (1934)

Há menos de três anos o nome de Julius Evola era para mim absolutamente desconhecido. Uma série de artigos publicados num semanário prenderam-me a atenção e, desde então, devo ter lido centenas de páginas em artigos e excertos da sua obra. Estas leituras não só o transformaram, a meus olhos, no mais importante pensador do séc. XX, como me levaram a outros filósofos – René Guénon, por exemplo nas referências aí contidas.
Datado de 1934 – e certamente objecto de revisões em edições posteriores, pois refere-se factos sucedidos após essa data – Revolta Contra o Mundo Moderno é, como eu já sabia, uma análise demolidora da modernidade, das suas crenças e fundamentos, da causas da involução e degradação civilizacional que atinge o Ocidente em geral e a Europa em particular; Evola descreve as características da civilização tradicional e os factores que, uma vez postos em marcha, a arrastam fatalmente à queda. Por isso não existe aqui qualquer réstia de esperança; identificado tempo presente como a Idade última, que antecederá uma restauração das condições primordiais (em Evola o tempo é cíclico e não linear), não nos caberá viver o novo amanhecer. Neste combate de causa perdida, «preocupemo-nos só com uma coisa: manter-nos de pé num mundo de ruínas».
Essa será a precisa razão porque Julius Evola continuará a ser um ilustre desconhecido: num mundo em que o materialismo triunfou sobre a espiritualidade, as suas ideias e os valores que promove parecem deslocados, ultrapassados, para além da “razoabilidade”ninguém gosta de más notícias, o discurso do “progresso” parece muito mais atraente. Daí a profunda cortina de silêncio sobre o autor e respectiva obra, a desvalorização e o enviesamento – basta ler o que qualquer enciclopédia corriqueira dirá sobre ele, suficiente para afugentar quem lá tiver chegado por acaso –, quando não o apagamento puro e simples.

É uma palavra de ordem que faz parte das convenções da historiografia moderna a exaltação polémica da civilização do Renascimento contra a medieval. Se não se tratasse de uma das numerosas sugestões difundidas na cultura moderna pelos dirigentes da subversão mundial, teria de se ver nisso a expressão de uma incompreensão típica. Se, depois do fim do mundo antigo, houve uma civilização que tenha merecido o nome de Renascimento foi precisamente a Idade Média. Na sua objectividade, no seu «virilismo», na sua estrutura hierárquica, na sua soberba elementaridade anti-humanística, tão frequentemente penetrada de sacro, a Idade Média foi como que uma nova chama do espírito da civilização una e universal das origens. A verdadeira Idade Média surge-nos sob características clássicas, e em nada românticas. O carácter da civilização que se lhe sucedeu tem um significado totalmente diferente. A tensão que durante a Idade Média tinha tido uma orientação essencialmente metafísica degrada-se e muda de polaridade. O potencial anteriormente recolhido sobre a direcção vertical — para cima, como no símbolo das catedrais góticas — descarrega-se no presente na direcção horizontal, para fora, produzindo, por sobressaturação de planos subordinados, fenómenos capazes de sensibilizar o observador superficial: na cultura a irrupção tumultuosa de múltiplas manifestações de uma criatividade quase totalmente privada de toda a base tradicional ou meramente simbólica, e portanto profana e dessacralizada; no plano exterior, a expansão quase explosiva dos povos europeus no conjunto de todo o mundo no período dos Descobrimentos, das explorações e das conquistas coloniais, que corresponde mais ou menos ao do Renascimento e do Humanismo. São os efeitos de uma libertação de forças idêntica à que se produz durante a decomposição de um organismo.
Pretendeu-se ver no Renascimento, em muitos dos seus aspectos, um retomar da civilização antiga, descoberta de novo e reafirmada contra o sombrio mundo do cristianismo medieval. Trata-se de um grave equívoco. O Renascimento só retomou do mundo antigo formas decadentes, e não as das origens, que estavam penetradas de elementos sacros e suprapessoais, ou então retomou-as desprezando completamente estes elementos e utilizando a herança antiga numa direcção absolutamente diferente. No Renascimento a «paganidade», de facto, serviu essencialmente para desenvolver a simples afirmação do Homem, para fomentar uma exaltação do indivíduo, que passa a inebriar-se com as produções de uma arte, de uma erudição e de uma especulação privadas de qualquer elemento transcendente e metafísico.
[...]
No seu sentido mais geral, o humanismo pode-se dizer que é o estigma e a palavra de ordem de toda a civilização que se libertou das «trevas da Idade Média». Com efeito, esta civilização já só conhecerá o homem: é no homem que começarão e acabarão todas as coisas; é só no homem que assentam os céus e os infernos, as glorificações e as maldições que agora serão conhecidas. É este mundo — o outro do verdadeiro mundo — com as suas criações da febre e da sede, com as suas vaidades artísticas e os seus «génios», com a selva das suas máquinas e das suas fábricas e, por fim, com os seus chefes populares, que constituirá o limite para o homem.
A primeira forma sob a qual aparece o humanismo é o individualismo. Este caracteriza-se pela constituição de um centro ilusório fora do centro verdadeiro, como pretensa prevaricação de um «Eu» que é simplesmente o mortal do corpo — e como construção por meio de faculdades puramente naturais, que agora criam e defendem, através das artes e ciências profanas, aparências diferentes que, fora deste centro falso e vazio, não têm a menor consistência; verdades e leis essas marcadas pela contingência e pela caducidade próprias de tudo o que pertence ao mundo do devir.
Daí, um irrealismo radical, uma radical organicidade em tudo o que é moderno. Tanto por dentro como por fora, já nada será vida, tudo será construção: ao ser agora extinto, substituem-se em todos os aspectos o «querer» e o «Eu», como que num sinistro sustentáculo racionalista e mecanicista de um corpo morto. Tal como no pulular vermicular das putrefacções, desenvolvem-se então as mil conquistas, as mil superações e as mil criações do homem novo. Abre-se o caminho a todos os paroxismos, a todas as manias inovadoras e iconoclastas, a todo um mundo de uma retórica fundamental em que, tendo-se substituído o espírito pela imagem do espírito, já não conhecerão limites as fornicações incestuosas do homem nos campos da religião, da filosofia, da arte, da ciência e da política.