23 de decembro de 2017

La Cara Oculta de la ONU

Michel Schooyans
La Cara Oculta de la ONU (2001)

Michel Schooyans, de nacionalidade belga, doutorado em filosofia e teologia, professor universitário, sacerdote e membro da Academia Pontifícia de Ciências Sociais do Vaticano tem uma vasta obra publicada no campo da filosofia política. Não sendo uma personalidade situada nas margens (o então cardeal Joseph Ratzinger prefaciou uma das suas obras em 1997) é notável que, num tempo em que muita da hierarquia católica não se terá ainda apercebido do verdadeiro cariz da ONU – ou receará afrontá-la, a avaliar pelo seu silêncio –, Michel Schooyans tenha aqui alertado, já lá vão quase 20 anos, para os poderes e os objectivos que se ocultam sob uma aparência benigna dessa organização. Publicado originalmente em inglês em 2001, sob o título The Hidden Face of the United Nations, esta é a versão em língua espanhola, editada no México no ano seguinte, e agora oferecida na própria página do autor, após algumas dificuldades na divulgação do livro ao longo dos anos seguintes.
Considerava Michel Schooyans que a ONU se havia deslocado, 50 anos depois da sua fundação, do foco inicial nos direitos humanos e na democracia, para uma organização empenhada na engenharia social ao serviço de um novo totalitarismo. Se as suas conclusões se revelam certeiras, a análise dos precedentes parece demasiado condescendente; foi por isso uma surpresa, como leitor, constatar que Schooyans aceita sem pestanejar as bases fundacionais da ONU: o antropocentrismo, que considera uma tradição histórica, mesmo na própria Igreja. Estou convencido que neste ponto particular há um qualquer enviesamento: a Igreja sempre foi teocêntrica, pelo menos até um passado recente; e é sabido que o Papa Pio XII não nutria qualquer simpatia sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela qual Schooyans tem tão alta consideração, pois considerava-a, com razão, infecta de jacobinismo; foi mesmo preciso esperar mais de uma década, até ao pontificado seguinte, para João XXIII subscrever a declaração, numa versão católica. Schooyans poderá queixar-se de uma deriva ideológica, mas não será ela o florescer lógico de uma sementeira daninha?
Michel Schooyans denuncia o papel da ONU na tentativa de se arvorar a um poder supranacional, ganhando predomínio sobre legislações nacionais, reduzindo a soberania das nações a uma função residual, excedendo cada vez mais o seu mandato, numa concentração de poder sem precedentes. A chamada busca do “consenso” que suporta este tipo de medidas não significa uma adesão de nações e povos a princípios-base e a valores comuns, mas decisões que configuram a tirania da maioria rumo a um governo mundial, que será implementado pelo suborno, chantagem, ou pela força se necessário. Para esse objectivo contribuem a imposição do Tribunal Penal Internacional, o acosso das ONGs, os “novos direitos humanos”, o aborto, a homossexualidade e respectiva adopção parental, as “famílias” de “modelos” múltiplos, a eutanásia, a ideologia de género, tendo já entreaberto as portas à pedofilia. Apresenta-se assim como um novo absolutismo iluminado, alicerçado no relativismo, no cientificismo darwinista, no holismo new age, que visa não só revogar os direitos humanos originalmente proclamados em 1948, como também redefinir o Direito (os capítulos XI a XIV, que analisam a concepção jurídica de Hans Kelsen, adoptada pela ONU, são particularmente preocupantes). E, por fim, fomentar uma nova religião mundial, pois a globalização exige também o domínio da consciência individual.
Na terceira parte do livro, Schooyans afirma que esta deriva ideológica da ONU, por inconsistente e antinatural está destinada ao fracasso, com o contributo da oposição firme da Igreja e dos católicos. Diz textualmente no capítulo XVIII: «A Igreja tem um serviço urgente a prestar à comunidade humana: chamar a sua atenção sobre os desvios da ONU. A sua valentia não deixará de despertar os restantes valentes.» Seria interessante saber o que ele pensa sobre isso, agora que se passaram quase 20 anos sobre a publicação e as posições da ONU têm saído fortalecidas, enquanto a Igreja permanece muda. Tanto mais que, com o pontificado de Bergoglio, muitos católicos consideram que o cheiro a enxofre invadiu já o próprio Vaticano...
A face oculta da ONU não será assim tão oculta, pois a sua actividade está publicada e ao alcance de quem a quiser ler, revelando a agenda que lhe está subjacente; uma agenda nem sempre óbvia para quem acompanha nos media as medidas avulsas e espaçadas no tempo, pouco escrutinadas e explicadas por quem teria a obrigação de o fazer. A missão de paz e segurança da ONU (a tal aparência benigna a um olhar superficial), serve agora uma lógica malthusiana e internacionalista da hidra renascida, mais tenebrosa que nunca. A sua segurança destina-se a proteger a nova ordem mundial da elite globalista, e a sua paz será a paz dos cemitérios.

La nueva concepción de los derechos humanos se origina en una concepción reductora del hombre. El clima hiperliberal actual lleva al individualismo, al paroxismo. Estamos viviendo una revolución antropológica: el hombre ya no es una persona, un ser abierto a los demás y a la trascendencia; ahora es un individuo, condenado a buscarse verdades, a buscarse una ética. Es una unidad de fuerza, de interés y de disfrute.
Esta antropología fundamentalmente materialista, traerá como resultado una concepción puramente empírica de los valores. Ya no podría haber lugar para normas morales objetivas, comunes a todos los hombres; ya no habría valores que se impusieran al hombre porque son deseables en si. Ya no es posible, por ejemplo, inclinarse ante la dignidad de todo hombre, sea el que sea. De ahora en adelante, los nuevos valores, que Gérard-François Dumont denomina valores invertidos, provienen de cálculos utilitarios regulados por consenso. Estos valores invertidos se manifiestan en la frecuencia de las elecciones que se observa entre los individuos. Los valores son en última instancia lo que provoca placer a los individuos. Ahora bien, estos valores no pueden hacer otra cosa que dividir a los hombres, porque por mimetismo yo desearé lo que el otro desea. Así pues, este concepto del valor, a final de cuentas no solo resulta destructivo para el tejido social, sino que también constituye los prolegómenos de una nueva barbarie.
Con semejante concepción del hombre y de los valores, los derechos humanos terminan por ser reducidos a un catálogo movible de reivindicaciones puntuales de los individuos, se obtienen por consensos sucesivos y son reflejo de una aritmética de los intereses. Dado que ya no hay valores objetivos, y que de todas maneras la razón no es capaz de conocerlos, el valor en su concepción invertida resulta, a final de cuentas, lo que satisface las pasiones del hombre. En resumen, el derecho fundamental del hombre es el derecho de satisfacer sus pasiones individuales, y esto es lo que deberá ratificar el derecho positivo.
La felicidad no depende ya del bien común, puesto que ya no existe más que el bien particular. Estamos en el punto opuesto del humanismo tradicional, que sostiene que la felicidad depende del bien común, gracias al cual la Ciudad atenta a la justicia general, y se esfuerza por ofrecer a todos y cada uno de sus miembros las mejores condiciones de realización personal. Con la ruina de la universalidad de los derechos humanos, la felicidad ha quedado limitada a ser el residuo del placer, e incluso de los placeres individuales.

10 de decembro de 2017

Revolta na «Bounty»

John Barrow
Revolta na «Bounty» (1831)
The Eventful History of the Mutiny and Piratical Seizure of H.M.S. Bounty (1831)

Quando um livro tem na capa a frase «texto integral» não consigo ultrapassar a desconfiança, e esta edição da Europa-América confirmou as minhas suspeitas. Procurei o texto inglês – é fácil encontrá-lo, pois caiu no domínio público há muito tempo – e os problemas começaram logo na primeira página; decidi então fazer uma leitura simultânea e comparada das duas versões.
A «Nota do Editor» da versão portuguesa não corresponde ao «Prefácio» da edição original de 1831 – mas isso seria um mal menor. O primeiro capítulo, no original, faz um resumo das viagens dos navegadores ingleses aos Mares do Sul na segunda metade do séc. XVIII, sobretudo à ilha de Otaheité (ou Taiti), como introdução à narrativa; descreve o contacto com os indígenas, o seu carácter e os costumes, tal como os encontraram Samuel Wallis e James Cook, e termina na comparação com o seu estado lamentável à data deste livro, pelo qual o autor responsabiliza a influência dos missionários. Assim se preenchem cerca de 40 páginas que a versão da Europa-América omite completamente, pois inicia-se no capítulo II. O título dos capítulos foi alterado; o resumo dos capítulos, ao início de cada um deles, sob a numeração, apenas se encontra no índice do original, num texto mais sucinto e completamente diferente. Os próprios capítulos são depois seccionados e subintitulados segundo os pontos do resumo, o que não acontece na versão inglesa; também os parágrafos mais longos são divididos. Tudo isto denota uma tendência para a simplificação do texto por parte do editor e da tradutora, ou, em alternativa, do texto que lhes serviu de original; a tradução terá sido feita a partir do francês, dado que uma referência às «Ladrone Islands», no texto inglês, é dada nesta edição como «Ilhas dos Larrons» (a sua designação em francês), quando poderia ter sido traduzida por «Ilhas dos Ladrões» – o nome português pelo qual as Ilhas Marianas eram inicialmente conhecidas.
É de lamentar, também, a eliminação de inúmeras notas de rodapé do autor – nomeadamente uma, de grande extensão, onde se faz a comparação da viagem da chalupa de Bligh com outros casos aparentados, e se descreve a viagem do português Diogo Botelho Pereira, no séc. XVI, a bordo de uma minúscula fusta, entre a Índia e Lisboa –, que resultam no empobrecimento da obra. Mais ainda, a quase totalidade dos poemas transcritos ao longo do livro (com destaque para Lord Byron e Nessy Heywood – irmã de Peter Heywood, aspirante na Bounty e personagem central deste livro) foram pura e simplesmente suprimidos, pelo que esta estranha junção de um processo jurídico com excertos de poesia romântica, perde-se completamente. Por fim, no último capítulo, dedicado à ilha de Pitcairn, onde a Bounty encontrou o seu destino em 1790, a tradução termina abruptamente, após fazer a história dos últimos nove amotinados, saltando directamente para a «Conclusão», omitindo mais de uma trintena de páginas onde se descreve em pormenor as condições de vida e qualidades da pequena sociedade fixada na referida ilha, ao longo das décadas seguintes; uma sociedade modelar, profundamente religiosa e pacífica, segundo o testemunho registado por alguns dos ocasionais visitantes, como os capitães Beechey (em 1825) e Waldegrave (em 1830), sobre a qual pairava uma única ameaça – a importação e influência de ideias vindas do exterior. Suprimida foi também uma «Nota Complementar» de nove páginas, no final do livro. Entre omissões e inexactidões, a fidelidade ao texto original e a fluência da tradução poderia ser considerada bastante satisfatória, não fosse este corte à socapa de 25 a 30 por cento do texto da edição original. Se a ideia era dar uma versão condensada, numa edição de preço acessível, o leitor devia ser avisado do facto, e não ludibriado com a chancela «texto integral»...
Quanto à história do motim, o livro de John Barrow foi o primeiro a dar um relato completo do evento, conhecido até então por excertos e referências, entre as quais se destacava o poema The Island (1823) de Lord Byron, aqui frequentemente citado (mas geralmente ignorado nesta edição E-A). Desde então muitos outros escritores e escrevinhadores, bem como a indústria cinematográfica, glosaram e romantizaram este tema apetitoso de homens ocidentais que voltam costas à sua civilização e às suas obrigações para rumar a um autêntico paraíso terrestre, onde homens e mulheres viviam na mais feliz inocência (mas que não durou muito – nem para os amotinados, nem para os ilhéus).
A missão da Bounty era transportar rebentos da árvore-do-pão desde o Taiti até às Antilhas, para introduzir esta cultura, que estava na base da alimentação dos taitianos, nas ilhas atlânticas. A viagem durou dez meses; dada a impossibilidade de passagem pelo Cabo Horne houve necessidade de fazer um desvio pelo Cabo da Boa Esperança, mas decorreu sem outros contratempos de monta. O veleiro permaneceu ancorado cerca de seis meses e, poucos dias depois de iniciar o regresso, estalou a revolta, liderada pelo imediato Fletcher Christian. O tenente William Bligh, que comandava a Bounty, e outros dezassete marinheiros, foram colocados pelos amotinados numa chalupa e abandonados no mar alto, mas conseguiram concluir, à custa de um enorme sofrimento, uma viagem de 41 dias e mais de 3600 milhas náuticas que os levou até Coupang, na costa de Timor, onde encontraram auxílio. Daí rumaram a Batávia, nas Índias Holandesas e regressaram a Londres. Bligh foi promovido pelo Almirantado e encarregado de retomar a missão destinada à Bounty, que cumpriu com êxito. Simultaneamente, foi designada a fragata Pandora para se dirigir ao Taiti e trazer os amotinados à justiça; reuniu 14 dos 25 revoltosos, mas o navio naufragou e só dez chegaram a julgamento em tribunal marcial, em Portsmouth.
Em lugar do livro de aventuras que se poderia supor, para quem já conhecia a história pelas adaptações, este Revolta na «Bounty» é conduzido, maioritariamente, como um inquérito, citando fontes e testemunhas, confrontando documentos contraditórios, tentando perceber motivações e consequências, e fazer luz sobre um caso cujos contornos careciam de nitidez.

É a mais de um título digno de nota o facto de o comandante da Pandora fazer tão pouca referência aos revoltosos. Reproduziremos agora um outro relatório, da autoria, segundo toda a verosimilhança, do tenente Corner, terceiro-oficial da Pandora, acerca de cuja autenticidade não restam dúvidas. Confirma, de maneira retumbante, que o capitão Edwards era pessoa desprovida da mais normal humanidade.
"Três homens da Bounty – Coleman, Norman e M’Intosh – foram libertados dos ferros e mandados para as bombas. Os outros ofereceram os seus préstimos e suplicaram que lhes dessem possibilidade de salvarem a vida, mas em lugar de os atender, o comandante mandou colocar duas sentinelas suplementares sobre a cobertura da prisão com ordem de abater o primeiro que tentasse livrar-se das grilhetas. Não vendo a mínima possibilidade de escaparem à horrível sorte que os esperava, os presos começaram a orar e prepararam-se para enfrentar o seu destino. Todos esperavam que, de um momento para o outro, o navio se fizesse em bocados, pois o leme e parte do cadaste já tinham sido arrancados."
O navio naufragou e não se pouparam esforços para salvar a tripulação, mas o relato atribuído ao tenente Corner precisa:
"Ninguém se preocupou com os presos, ao contrário do que escreve o autor da Pandora's Voyage, embora Mr. Heywood suplicasse ao capitão Edwards que tivesse piedade deles, quando este passou sobre a cobertura do compartimento para se atirar ao mar. Já então o navio adornara sobre o flanco e tinha o lado de bombordo da frente inteiramente submerso. Por felicidade, o mestre de armas, acidental ou voluntariamente, deixou cair as chaves dos ferros pelo alçapão de entrada, que entreabrira ao passar para se lançar por sua vez à água. Eis como os presos iniciaram a sua própria libertação. Ajudou-os quase imediatamente o generoso segundo-contramestre, William Moulter, que, com grande perigo de vida, se agarrou às braçolas e moveu as compridas barras que prendiam a vigia, gritando: "Ou vos liberto, ou vou para o fundo convosco!"
"Não era sem tempo: mal abrira a vigia, o navio afundou-se e ficaram apenas de fora as pontas do mastro grande. O mestre de armas e as sentinelas afundaram-se com ele e nunca mais foram vistos. Era apavorante ouvir os gritos e as súplicas dos que se afogavam! Decorreu mais de meia hora até os sobreviventes serem recolhidos pelas embarcações. Mr. Stewart, John Sumner, Richard Skinner e Henry Hillbrant afogaram-se, todos com as mãos ainda imobilizadas pelas algemas.
"Mr. Heywood foi um dos três últimos a saírem da prisão, onde a água já entrara pelo alçapão. Saltou para o mar, agarrou-se a uma prancha e dirigiu-se a nado para uma pequena ilha arenosa à flor da água, a três boas milhas de distância. Um escaler recolheu-o no caminho, praticamente nu. James Morrison tentou seguir o exemplo do seu jovem companheiro e, embora com as mãos ainda presas pelas algemas, conseguiu manter-se à superfície até ser recolhido."
À primeira vista, esta narrativa parece, evidentemente, incrível. É certo que os homens são, às vezes, surpreendidos a comportar-se como monstros, mas em momentos em que os cega um ódio louco. Aqui, nem isso acontecia. A sorte dos infelizes prisioneiros devia, pelo contrário, impressionar a piedade e os sentimentos humanitários do seu carcereiro.
No relato feito pelo médico de bordo consta que, logo que se soltaram as escoras, os cabos, as capoeiras das galinhas e todos os objectos susceptíveis de flutuar, "os prisioneiros foram, por ordem, libertos dos ferros." Sim, gostaríamos muito de saber que oficiais, em tão crítica situação, se resignariam a ser testemunhas de tamanha crueldade sem se rebelarem contra a manutenção a ferros daqueles desgraçados, ante a evidência de o navio estar prestes a afundar-se! Mas ver-se-á mais adiante, graças às declarações de Mr. Heywood, que os cativos ficaram encarcerados na «Boceta de Pandora» e que não houve exagero no comportamento ignóbil atribuído ao capitão Edwards.
É um momento apavorante aquele em que um navio adorna pela última vez antes de se afundar! Quando a Pandora submergiu, o médico diz que "a equipagem mal teve tempo de se lançar ao mar e de soltar um tremendo grito de pavor. O mais horrível, a princípio, foram os brados dos que se afogavam, mas à medida que se afundavam e perdiam consciência, os gritos extinguiram-se progressivamente."